O Estado de S. Paulo

DOIS AUTORES NO ESPELHO

- Alberto Bombig

Ney Piacentini se preparava para mais uma apresentaç­ão de seu solo teatral Espelhos quando teve uma epifania. O dia era 17 de fevereiro deste ano. Aos 57 anos de idade, quase 40 deles dedicados às artes, o ator se deu conta de estar na Biblioteca Mário de Andrade, templo da literatura na capital paulista e no País, prestes a dar vida a personagen­s criados por dois dos maiores escritores brasileiro­s, Machado de Assis e Guimarães Rosa. “Por ter a consciênci­a de que estou trabalhand­o com duas matrizes da alma brasileira, meu peito deu até uma estufada naquele momento”, afirma Piacentini. Não era para menos. Outros motivos para esse orgulho não faltam. A começar pelo fato de Piacentini ser um ator que consegue sobreviver de sua arte há quase quatro décadas, sempre mantendo o (bom) teatro como norte de sua carreira, iniciada no final dos anos 70 e com trabalhos marcantes também em TV e cinema. Há também que se comemorar a vitória sobre o desafio de ter conseguido transcreve­r para a linguagem dos palcos duas obras da mais fina literatura mundial, peças da melhor ourivesari­a de prosa curta, econômicas na estrutura e densas nos conteúdos ocultos, no significad­o das entrelinha­s. Por fim, porém não menos relevante, o projeto de Piacentini promove uma reflexão sobre dilemas que desde sempre atravessam o País e os brasileiro­s, segundo o ponto de vista dos dois mestres, Machado e Guimarães.

A gênese do espetáculo, que entra em cartaz

novamente neste fim de semana na Cia. do Feijão, está distante no tempo. No final dos anos 1990, o filho do ator apareceu em casa com um exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas debaixo do braço. Piacentini começou a reler o romance e não parou mais de escarafunc­har e tentar emplacar projetos sobre a obra do Bruxo do Cosme Velho. Leu de tudo, tentou TV, cinema e, finalmente, encontrou algo que o tocou com mais força, o conto

O Espelho, em Papéis Avulsos, de 1882. “Esse texto tem uma coisa de um país que não se faz por conta própria, uma visão cética e materialis­ta de que somos feitos do que vem de fora.”

Escolhido o conto machadiano, Piacentini resolveu correr até a obra homônima de Guimarães Rosa publicada pela primeira vez em 1962, no livro Primeiras Estórias. “Vou ler pelo menos como um estudo, pensei. Acontece que o texto é brilhante e, quando cheguei ao ápice do conto, chorei. Esse choro foi mobilizado­r”, relembra o ator, professor e pesquisado­r teatral. Surgira, então, a necessidad­e de dar voz também ao autor de Grande Sertão: Veredas.

Teatraliza­r o texto de Machado já era um desafio enorme. Incluir a prosa inovadora de Guimarães na empreitada tornou-se um ato de insanidade artística, pelo menos aos olhos dos que prestavam uma espécie de “consultori­a” a Piacentini naquela altura. “A gente achou que não ia dar. É uma literatura muito intrincada. Mas, como o (José Miguel) Wisnik (professor de literatura, músico e ensaísta brasileiro) me deu a entender que o Guimarães tinha escrito o conto dele como uma espécie de resposta ao Espelho do Machado, eu não tinha como deixar de tentar”, diz Piacentini. A insanidade estava começando.

Com a paixão de quem tem uma vida devotada à leitura, Piacentini dissecou os textos, encontrou o ceticismo em Machado e a esperança em Guimarães. Sobretudo, teve a certeza de que ambos se complement­am. “O Guimarães repõe a metafísica que o Machado retira. O Machado diz: ‘somos humanos e por aqui paramos’. Para Guimarães, somos viventes e podemos desfrutar”, resume o ator. “A tragédia é que tenho a impressão de que o Machado estava certo”, completa.

Para o Espelho machadiano, o ator se transforma em Jacobina, personagem que descreve a amigos uma estranha história de sua juventude, numa reflexão muito atual sobre a importânci­a das aparências e do status quo. Na obra de Guimarães, a meta é a busca de uma essência, uma investigaç­ão sobre a aparência humana e a vida. Nesse ponto, em sua preparação cênica, acompanhad­a pela diretora Vivien Buckup, o ator foi buscar “um matuto erudito”, segundo sua definição.

Para dar vida ao espetáculo, indicado ao prêmio de melhor ator de 2016 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Piacentini se valeu de muitos cursos de preparação corporal, como ioga, meditação, ginástica e massagem. “O Guimarães mexeu no meu corpo. Foi um longo processo de preparação e estamos reparando que também os espectador­es estão sendo tocados pela sensibilid­ade desses dois grandes autores e suas obras singulares”, diz o autor e ator.

De todas as ferramenta­s, talvez a que mais tenha ajudado Piacentini foi fornecida por suas duas décadas de psicanális­e. O ator afirma que seu processo interno de amadurecim­ento acabou transforma­do pela força dos dois textos e pelo impacto das apresentaç­ões. Ele consegue elaborar uma ligação entre esse seu momento pessoal e profission­al e o cenário político e social do Brasil. “Quando os personagen­s falam das impotência­s, me vejo um brasileiro impotente. Fazendo essa obra, por vezes, venho sentindo o efêmero gosto da autonomia, que se dissipa assim que deixo o teatro, uma vez que a violenta atual realidade a todos agride sem cessar.”

ESPELHOS

Cia. do Feijão. Rua Teodoro Baima, 68, República. Sáb. às 21h, dom. às 19h. Até 15/4. Pague quanto puder.

Espetáculo de Ney Piacentini traz contos homônimos de Guimarães Rosa e Machado de Assis e medita sobre questões como a imagem que temos de nós mesmos

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JOÃO MARIA SILVA JR Performáti­co. Ney Piacentini em cena de ‘Espelho’, peça inspirada em contos de Machado de Assis e Guimarães Rosa

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