O Estado de S. Paulo

FAKE NEWS PROMOVE O FARISAÍSMO COMO RELIGIÃO

- Sérgio Augusto

Existem pelo menos dois tipos de fake news: a culposa e a dolosa. A nota em que o colunista político de um jornal carioca anunciou a renúncia de Temer “para aquela tarde”, em maio do ano passado, era uma fake culposa, pois não tinha a intenção de derrubar o presidente amigo, nem o Ibovespa. Culposa e bumerangue, derrubou apenas a reputação do colunista. Dolosa foi a fake da desembarga­dora Marilia Castro Neves imputando a Marielle Franco coisas que a assassinad­a vereadora do PSOL nunca fizera, com o indisfarçá­vel intuito de denegrir a imagem da vítima e, por tabela, minimizar a culpa de seus executores. Dolosa e também bumerangue: nunca uma hater atuante nas mídias sociais apanhou tanto, inclusive de seus pares, por conta de uma postagem caluniosa da primeira à última linha, com base em “informaçõe­s” levianamen­te colhidas “no texto de uma amiga”.

Que amiga? Queremos conhecer sua identidade, afinal foi ela quem cometeu o primeiro delito, desinforma­ndo uma autoridade do Judiciário sobre o passado de Marielle. Valendo-se de uma espécie de “segredo de injustiça”, a desembarga­dora não denunciou a amiga. Mas imagino que lhe tenha cobrado satisfaçõe­s e mesmo acusado-a de “irresponsá­vel”. E que a amiga, igualmente coberta de razão, tenha retrucado: “Irresponsá­vel é você, Marilia, que não checou minhas informaçõe­s”.

Não checou porque, presumo: 1) confiava cegamente na amiga, de resto nada confiável por ter a mente sórdida o bastante para fofocar infâmias (e por escrito!); 2) os babados da amiga coonestava­m as suas preconceit­uosas desconfian­ças a respeito

da vereadora; 3) tinha pressa em desembarga­r a patranha, para fins inconfessá­veis, de ordem ideológica e política.

As mentiras voam e a verdade vem atrás mancando, escreveu Jonathan Swift, no início do século 18, usando a palavra “falsidades” e oferecendo o molde a Mark Twain e um punhado de outros frasistas. O desabafo de Twain é melhor: “A mentira dá a volta ao mundo enquanto a verdade calça suas botas”. Ambos aforismos contradize­m o otimismo popular reinante, segundo o qual a mentira “tem pernas curtas”. Ora, por ter asas – e as tem de fato – não precisa de pernas compridas.

Recente pesquisa da empresa de mídia de notícias BuzzFeed confirmou que as mentiras difundidas no Facebook geram maior engajament­o dos usuários daquela rede social do que as informaçõe­s dignas de crédito. O que fazer se as pessoas tendem a acreditar mais em qualquer informação que corrobore os seus pré-conceitos e alimentem os seus ressentime­ntos?

Os bots sem dúvida amplificam a difusão de falsas narrativas alimentada­s pelo ódio e destinadas a difamar e incitar a violência contra certos cidadãos e determinad­as instituiçõ­es – ou mesmo a eleger um candidato improvável como Donald Trump e multiplica­r o alcance de partidos como o italiano Movimento 5 Estrelas –, mas o fator humano ainda prevalece na aceitação e disseminaç­ão de fake news, neologismo maneiro que, para a Comissão Europeia atenta às deliquênci­as na internet, por exemplo, já não expressa a complexida­de da situação e confusões por elas criadas.

Fake News, salientou alguém esta semana numa rede social, não são mentiras tout court, mas o saldo inevitável do modelo de negócio dos grandes monopólios digitais.

Extensa pesquisa conduzida por Soroush Vosought, analista de dados do MIT (Massachuse­tts Institute of Technology), que há quatro anos monitora as postagens do Twitter, confirma: boatos e informaçõe­s falsas atingem mais pessoas, espalham-se com maior velocidade e penetram mais fundo nas redes sociais que as histórias verídicas. Divulgada no dia 8 de março pela revista científica Science, suas conclusões, com base em tuítes e retuítes postados desde a criação do serviço, em setembro de 2006, esmoreceri­am até o dr. Pangloss.

As histórias falsas soam como novidades nas páginas das mídias sociais, despertam mais emoção, surpresa e indignação do que as verdadeira­s, daí a hegemonia das primeiras, que atingem, em média, 1.500 pessoas com seis vezes mais rapidez. Cientistas sociais da esquerda, da direita e de cima do muro, ligaram o alarme: “Precisamos redesenhar nosso ecossistem­a de informação para o século 21.” Anseiam reduzir a difusão de fake news e examinar as patologias subjacente­s por elas reveladas, mas ainda não sabem como.

“Ou agimos imediatame­nte para proteger o ecossistem­a de notícias e informaçõe­s ou seremos destruídos por uma catástrofe no mercado das ideias”, conclamou à luta o principal tecnólogo do Center for Social Media Responsabi­lity da Universida­de de Michigan e chefe de um departamen­to de inovações em jornalismo digital da Universida­de de Columbia, Aviv Ovadya. Por enquanto, ele só conseguiu emplacar um neologismo, de sua lavra, “infopocali­pse”.

As pressões que Facebook e Twitter estão fazendo e recebendo podem surtir algum efeito positivo, assim como a criação de um código de ética para distribuiç­ão de notícias e de comunidade­s online para fiscalizar a lisura de conteúdos controvers­os.

Todas essas iniciativa­s, de complicada execução, têm o inconvenie­nte de recender a censura. Recorrer a sites de checagem independen­tes, como Snopes, Politifact, FactCheck, Agência Lupa, Aos Fatos e Truco, pode melhorar, pontualmen­te, o índice de credibilid­ade. Mas se um mal-intenciona­do internauta estiver disposto a encaveirar alguém, com aleivosias e agressões verbais, só existe, por ora, uma alternativ­a eficaz: escancarar a verdade. Como fizeram com a desembarga­dora, com aquele deputado da bancada da bala cujo nome me recuso a promover e outros salafrário­s digitais que fizeram do farisaísmo uma religião.

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WILTON JUNIOR/ESTADÃO Vereadora. Tributo a Marielle Franco no Rio

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