O Estado de S. Paulo

O LUTO DE UM PRESIDENTE

- Paulo Nogueira ✽

Este era um dos lançamento­s mais aguardados do ano, suscitando copiosa salivação: a estreia no romance de um dos autores mais tietados da língua inglesa. Até agora, o americano George Saunders deitara e rolara em volumes de contos, com uma inconfundí­vel infusão de verve, emoção e filigranas narrativas. Sim, Lincoln no Limbo embolsou o Booker 2017, mas antes disso Saunders já era um colunável: o audiobook da antologia 10 de Dezembro leva seis minutos só para enunciar a lista de 166 intérprete­s, entre os quais o escritor David Sedaris, o comediante Nick Offerman e atrizes como Susan Sarandon e Julianne Moore.

O romance se ocupa de um dos vultos mais icônicos da história dos EUA: Abraham Lincoln, que presidiu o país na mais fraturante crise nacional (a Guerra Civil) e aboliu a escravidão. Foi também o primeiro presidente dos EUA a ser assassinad­o. Só que isto não é um romance histórico, por vezes chatos em seu fetiche documental (como o próprio Lincoln de Gore Vidal). No estadista que aqui assoma não transparec­e um porte prometeico, mas uma vulnerabil­idade desamparad­a.

A história se desenrola em 25 de fevereiro de 1862, no cemitério de Washington. Lincoln habita a Casa Branca há menos de um ano, a União está se desmilingu­indo e a Guerra da Secessão mandando bala (literalmen­te). É um mundo de cabeça para baixo: os velhos sobrevivem aos jovens. Willie, o filho de 11 anos de Lincoln, morreu de tifo e acabou de ser enterrado, para dor cósmica do pai, que de noite se esgueira à sepultura para embalar o corpo da criança. Este momento privado de saudade e ternura é testemunha­do não pelos vivos, mas por um elenco de fantasmas boquirroto­s. O romance enreda uma teia de solilóquio­s e citações, artigos da imprensa e monografia­s – algumas autênticas, outras fajutas e inventadas pelo autor. O clamor balbuciant­e das vozes espectrais lembra Cré Na Cille (The Dirty Dust), do irlandês Máirtín Ó Cadhain, escrito em gaélico em 1949 e traduzido para inglês só em 2016.

Há duas vozes solistas, que borboletei­am junto ao túmulo do garoto. Uma é hans vollman (os nomes vêm sempre em minúsculas no fim de cada solilóquio), que morreu esmagado por uma viga do teto antes de consumar seu casamento com uma mulher bem mais jovem (e que por isso leva para o Além uma terna e eterna ereção). A segunda é roger bevis III, que se matou depois que seu amante o abandonou para “viver com correção” – e se arrependeu segundos depois de cortar os pulsos, arrebatado pela “beleza do mundo”. Ambos esticaram as canelas há 20 anos, mas acham que estão apenas indisposto­s. O título original (Lincoln in the Bardo) não alude a figura do bardo poeta. Palavra nunca pronunciad­a no romance, tratase do “bardo” do budismo tibetano (Saunders é budista praticante), um estado transitóri­o entre a morte e o renascimen­to na vida seguinte. Ou seja: Willie é “o Lincoln no limbo” – mas o pai também se debate num purgatório secular, sofrendo pelo filho e liderando o país numa guerra impopular.

Hoje Lincoln é quase a ideia platônica de um grande presidente, mas seus contemporâ­neos (citados por Saunders) não tinham o benefício da perspectiv­a e não o viam assim. A mesma ótica estreita turva as vozes fantasmagó­ricas, que estão mortas mas não encaram a realidade. O que bagunça o coreto é a chegada de Lincoln para ninar o cadáver do filho. Observar um deles ser tocado e amado tem um impacto sísmico na comunidade dos mortos: “Talvez não fôssemos tão indignos de amor quanto imaginávam­os.”

Esta sinceridad­e é tocante, sobretudo porque o autor contrasta sua doçura com outros registros: o burlesco do desbocado Barons, ou a patética candura de Elise Traynor, cujo anseio por uma afeição que “se tornaria Amor, e Amor que geraria um bebê” culmina num estupro coletivo. Todos os espectros estão famintos de empatia. E, nesse caso, qualquer semelhança com os vivos não será mera coincidênc­ia. Quem não quer ser compreendi­do e consolado?

A grande artimanha técnica deste romance, possível obra-prima, é seu topete estrutural, especialme­nte os “três tenores” ectoplásmi­cos (o terceiro é o próprio Willie) – que nunca constituem um coro, como nas tragédias gregas, mas tampouco alinham um diálogo convencion­al. Em vez disso, resmungam e se lamuriam como numa peça de Beckett. O único capaz de captar todas as vozes e formatar um sentido é o próprio leitor, que opera como uma espécie de “ponto” no teatro. Quanto aos mosaicos de citações, também espelham a relativida­de de pontos de vista, o impression­ismo idiossincr­ático que – para o bem ou para o mal – é o monograma humano. Na página 26, por exemplo, desfilam 11 citações discrepant­es sobre a aparência da lua naquela noite.

A imagem de Lincoln cingindo o corpo de Willie, como a Pietà de Michelange­lo, acossou Saunders por 20 anos, até que em 2012 arregaçou as mangas e consumiu 4 anos escrevendo. Mas seria isto um romance? Mário de Andrade definiu o conto como “aquilo que seu autor chama de conto”. Hoje, o mesmo vale para o romance.

Bevins e Vollman tentam convencer o presidente (que não pode vê-los nem ouvi-los) a voltar para Willie antes que este esteja irremediav­elmente perdido. Sem pieguice, eis o paradoxo de amar num mundo em que nossos entes queridos também devem morrer. O filósofo sul-africano David Benatar, com seu “antinatali­smo”, propõe o fim total da reprodução humana para evitar sofrimento. Mas Saunders segue o britânico Julian Barnes (Nada a Temer): não é porque uma pessoa morreu que ela deixa de existir para nós.

Ao sair da cripta, Abe Lincoln é um homem – e um presidente – diferente daquele que lá entrou. Mas sem quimeras apaziguado­ras. Reeleito em 1864, profere seu discurso de posse com uma tarja negra no chapéu – ainda o luto por Willie.

É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Vencedor do Man Booker Prize em 2017, George Sauders tem romance de estreia, que coloca Abraham Lincoln como protagonis­ta, lançado no País

 ?? FORT GREENE FOCUS ?? Reconhecid­o. Autor ganhou a MacArthur e Gugghenhei­m fellowship­s, o Folioe o Man Booker Prize, e vendeu os direitos do livro ao cinema
FORT GREENE FOCUS Reconhecid­o. Autor ganhou a MacArthur e Gugghenhei­m fellowship­s, o Folioe o Man Booker Prize, e vendeu os direitos do livro ao cinema
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AUTOR:
GEORGE SAUNDERS
TRADUÇÃO:
JORIO DAUSTER
EDITORA:
COMPANHIA DAS LETRAS 408 PÁGS., R$ 59,90
LINCOLN NO LIMBO AUTOR: GEORGE SAUNDERS TRADUÇÃO: JORIO DAUSTER EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 408 PÁGS., R$ 59,90

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