O Estado de S. Paulo

UM JARDIM ACIMA DO PARALELO 38

- André Cáceres

“Era uma vez um jardim, cercado de todos os lados por uma grande cerca, muito alta. Nesse jardim, um velho demônio governava milhares de escravos”, conta a senhora Oh à netinha Yeongsun. “O surpreende­nte”, prossegue, “era que o único som que se ouvia dentro desses muros altos era o som de risadas alegres.” A parábola não poderia tecer uma analogia mais clara da Coreia do Norte e encerra uma das sete ficções que compõem A Acusação: Histórias Proibidas Vindas da Coreia do Norte, de Bandi, que a Biblioteca Azul lança no Brasil.

Essa é uma daquelas obras cuja publicação é tão interessan­te quanto o conteúdo: os originais foram contraband­eados pela fronteira com a China com a ajuda do ativista Do Hee-yun. Bandi, pseudônimo que em coreano significa vaga-lume, ainda vive na Coreia do Norte, o que é inédito: até hoje, só se publicou relatos de refugiados do país. O caso lembra o de outros escritores perseguido­s em suas pátrias, como o Nobel Alexander Soljenitsy­n e o pai da distopia, Ievguêni Zamiátin.

Pelo pouco que se sabe, Bandi nasceu em 1950 e é membro da Liga de Escritores Chosun, organizaçã­o fiscalizad­a pelo Partido. Não há como saber seu gênero. Nos contos Relato de uma Deserção, Cidade de Espectros e Pandemônio, exprime a perspectiv­a feminina com tanta clareza que se pode intuir que seja mulher, mas as personagen­s, sempre mães, cônjuges, avós, se afirmam pela relação com um homem, o que contradiz essa impressão.

Os contos que compõem A Acusação foram escritos entre 1989 e 1995, e tratam de pessoas comuns de posições sociais distintas – desde pobres e dissidente­s do Partido até a filha de um mártir da Guerra da Coreia e o filho de um membro da Bowibu, a polícia secreta norte-coreana. O que une as narrativas é o senso trágico de cidadãos impotentes diante do totalitari­smo, forçados a engolir a arbitrarie­dade do poder que os envolve. “Será que Solmoe, a vila em que cresceu, era uma cidade estrangeir­a como Tóquio ou Istambul? Como era possível que sua própria cidade, em seu próprio país, sua própria terra, fosse tão remota, tão completame­nte inatingíve­l?”, pondera o narrador em Tão Perto,

Tão Longe, quando o personagem Myeong-chol é proibido de viajar a fim de ver a mãe no leito de morte porque Kim Il-sung visitaria a região.

Em Relato de uma Deserção, Lee Il-cheol é classifica­do como um elemento hostil pelo governo pois seu pai, um agricultor, estragou por acidente algumas sementes. “Mesmo se o pai tivesse cometido um crime hediondo que realmente merecesse a pena de morte, que tipo de crime podiam atribuir a seus filhos, que eram meras crianças na época?”, questiona sua mulher, indignada.

Em Cidade de Espectros, Gyeong-hee é filha de um mártir, tem excelente posição social e mora no centro de Pyongyang. No entanto, quando começa a usar cortinas diferentes, torna-se suspeita de espionagem. O motivo real? Seu filhinho tinha medo dos retratos de Karl Marx e Kim Il-sung na rua.

O autoritari­smo – ou o temor dele – sempre foi um manancial riquíssimo para romances distópicos, o que explica sua vasta produção na União Soviética, evidente em livros como Nós, de Zamiátin, e A Escavação, de Andrei Platonov. A ascensão e queda do fascismo também influencio­u, em grande medida, sua difusão em outros países por meio de Orwell, Huxley, Burgess etc. À época da ditadura militar, o estilo floresceu também no Brasil, cultivado por nomes como André Carneiro (Piscina Livre) e Ignácio de Loyola Brandão (Não Verás

País Nenhum). Hoje a distopia retorna à baila, à luz de acontecime­ntos políticos recentes que explicam, por exemplo, o sucesso de Margaret Atwood.

A Acusação daria uma excelente coletânea de ficções distópicas. Bandi, porém, não denuncia uma possibilid­ade remota ou especulati­va. Sua literatura é um retrato da realidade. A miséria reflete-se em cada linha, desde o frio que assola os pobres (“ele conhecia cadáveres que liberavam mais calor do que aquele aquecedor”) até a frustração que arrebata o filho do oficial da Bowibu: “Num lugar em que as emoções são reprimidas e as ações são monitorada­s, a encenação se torna onipresent­e, e é tão convincent­e que chegamos a enganar a nós mesmos”, protesta o rapaz em No Palco, indignado ao ver o povo faminto ser obrigado a demonstrar luto após três meses da morte de Kim Il-sung.

O líder supremo, aliás, merece atenta observação. Descrito como “um homem cujas roupas de um dourado pálido pareciam derramar uma suave camada de névoa, que o envolvia dos pés ao chapéu fedora”, Kim Il-sung irradia carisma, hipnotiza seus seguidores. “Não é mais alto que os céus e mais profundo do que os mares, o amor do Grande Líder?”, exalta um deles, esquecendo que o ar rarefeito das camadas superiores da atmosfera nos sufoca e a (o)pressão das obscuras águas abissais nos esmaga. Esse é o resultado da magia conjurada pelo velho demônio. “Por que ele lançava essa mágica?”, questiona a sra. Oh. “Para esconder os sofrimento­s que impunha àquelas pessoas, claro, e também para criar um engodo, dizendo, ‘Veja como são felizes as pessoas no nosso jardim’.”

O cotidiano distópico da Coreia do Norte é retratado em sete contos de autoria anônima escritos por um dissidente do regime que mora no país

 ?? CLAUDIA TREVISAN/ESTADÃO ?? Mosaico. Kim Jong-il (E) e Kim Il-sung ao lado dos camponeses
CLAUDIA TREVISAN/ESTADÃO Mosaico. Kim Jong-il (E) e Kim Il-sung ao lado dos camponeses

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