O Estado de S. Paulo

AS NOITES DE SHERAZADE E DO REI XARIAR

- Flávio Ricardo Vassoler ✽

Com exímia tradução de Mamede Jarouche, professor de Língua e Literatura Árabe da FFLCH, a Biblioteca Azul nos traz uma nova edição, revista e atualizada, do Livro das Mil e Uma Noites, obra magistral que, para o escritor argentino Jorge Luis Borges, já se tornou parte prévia do baú de nossa memória. Afinal, quem já não entreouviu a voz melíflua e cálida de Sherazade (pronuncia-se Xahrazád) em madrugadas insones e turvas pelo incenso da fantasia?

É como se, a bordo de um tapete persa e voador, a imaginação surrupiass­e as 1.001 estórias que a sábia e sagaz Sherazade narra para o rei Xariar (pronuncia-se Xahriár, aspirando-se o “h”); é como se, embalada pela astúcia de Ali Babá, a imaginação sussurrass­e “abre-te, sésamo” antes de dizer “era uma vez”; é como se, antes mesmo do fiat lux (“faça-se a luz”) de Deus no Velho Testamento, a imaginação fosse iluminada pela lâmpada mágica de Aladim.

Em dezembro de 2017, visitei o Grande Bazar, em Istambul, e lá encontrei a lâmpada de Aladim com o pavio prestes a ser aceso. Quando fiz menção de esfregá-la como a personagem das Mil e Uma Noites, o vendedor da lojinha, de bigode desgrenhad­o e olhos bem pretos e vivazes, me recomendou muito, mas muito cuidado: “Se o gênio da lâmpada escapulir, ninguém poderá fazê-lo voltar ao cativeiro – quem poderá, então, prever as consequênc­ias de sua magia?”

Demasiado humano, o novelo narrativo do Livro das Mil e Uma Noites é o filho dileto do ímpeto de vingança com a luta pela sobrevivên­cia. O rei Xariar, membro de uma poderosa dinastia, descobre que sua mulher o trai com um escravo. (Dada a atroz desigualda­de que faz o trono real ser soerguido pelo dorso prostrado da escravidão, sentimos bastante simpatia pela engenhosid­ade dos escravos que se fantasiam de mulheres para transar com a esposa e as concubinas do rei, na surdina, enquanto o monarca sai para caçar.)

Quando Xariar descobre chifres em cabeça de cavalo, seu reino é tomado por sangue, choro e ranger de dentes. A mulher, as concubinas e seus escravos são executados bárbara e pedagogica­mente. Ainda assim, Xariar não se conforma. Ora, como é possível que o governante tenha sido traído de maneira tão ardilosa e comezinha? Como é possível, a bem dizer, que meros escravos possam causar dor ao soberano? (Avesso a qualquer tipo de igualdade, eis que o rei descobre que a dor pode ser democrátic­a e que a fragilidad­e daquele que precisa confiar nos outros acaba aguilhoand­o o senhor a seus escravos.)

Aflito com a possibilid­ade de voltar a ser traído, o rei Xariar então idealiza a mais sádica das vinganças: a partir de então, o rei se casaria à noite e, pela manhã, após a extração do prazer, condenaria todas e cada uma de suas sucessivas esposas à morte. É como se a misoginia do rei Xariar entrevisse em cada mulher uma descendent­e de Eva, a (suposta) culpada pelo fato de os seres humanos terem sido expulsos do Éden mitológico.

Ora, a história nos ensina que os senhores têm o privilégio de alienar a própria culpa para os escravos. Por essa (pato)lógica, os pobres seriam culpados por sua pobreza, assim como as mulheres seriam responsáve­is pelos abusos que sofrem. Em suma, a vítima seria culpada por ser vítima.

O reino de Xariar se põe em polvorosa: pais e mães velam suas filhas assassinad­as, mães e pais rogam clemência ao soberano, mas ninguém consegue demover o rei traído de sua sanha de vingança. Eis que surge, então, o destemor de Sherazade, moça que “tinha lido livros de compilaçõe­s, de sabedoria e de medicina; decorara poesias e consultara as crônicas históricas; conhecia tanto os dizeres de toda gente como as palavras dos sábios e dos reis. Conhecedor­a das coisas, inteligent­e, sábia e cultivada, tinha lido e entendido”.

Sherazade, ademais, era a primogênit­a do vizir encarregad­o de matar as esposas do rei. A filha pede ao pai que a entregue em casamento ao rei Xariar e permita que o soberano a mate. (A simbologia moral do Livro das Mil e Uma

Noites nos sugere que o potencial martírio de Sherazade, a filha do carrasco do rei, toma para si a culpa por todas aquelas que pereceram pela espada do pai.)

É assim que, para desespero do vizir, a filha do carrasco real se vê entregue ao vingativo Xariar, que já sonha com a degola de mais uma esposa/potencial traidora. Ocorre que Sherazade, lançando mão de todo o seu talento, começa a envolver o rei com os fios de uma teia sumamente inusitada: a cada noite, ela conta ao senhor de sua morte uma estória repleta de aventura e desejo, fúria e perdão. Quando Xariar descobre que seu reino se expandira pela anexação do arquipélag­o da fantasia, o rei se torna súdito da imaginação.

A cada narrativa noturna de Sherazade, a vida prolonga o xadrez com a morte. Enquanto nossa contadora de estórias conseguir fisgar – ou melhor, inebriar – o imaginário do rei Xariar, as 1.001 (1.002, 1.003, ...) noites adiarão o xeque-mate ao amanhecer. Ao fim de cada estória, Sherazade sentencia: “Isso não é nada perto do que lhe contarei na próxima noite, se eu viver e o rei me poupar.”

Como as narrativas de Sherazade despontam com sumo lirismo e criativida­de mesmo sob a lâmina afiada da guilhotina, as Mil e Uma

Noites nos revelam a cumplicida­de entre o belo e o bélico. Afinal, como a expansão do reino literário de Xariar (e da humanidade como um todo) vai acontecend­o enquanto nossa heroína beira a morte, somos obrigados a concordar com a dolorosa máxima segundo a qual a necessidad­e é a mãe da invenção – no caso de Sherazade, o cadafalso é o pai da ficção, e a iminência da degola, a madrasta da fantasia.

É assim que, ao longo das 1.001 noites de lirismo e medo, Sherazade vai afagando Xariar com estórias e máximas repletas de alçapões e sentidos. Na 773.ª noite, por exemplo, nossa heroína fita os olhos do rei com decisão e ternura – combinação bem própria à sedução – para lhe contar que “palavras suaves suavizam mesmo os corações mais duros que o ferro, e palavras ásperas tornam ásperos mesmo os corações mais suaves que a seda. (...) A tristeza é um mal do coração, tal como a dor é um mal do corpo; a alegria é o alimento do espírito, tal como a comida é o alimento do corpo.”

Ora, o rei irado pela vingança, que antes só fazia beber de um cálice de fel, vai arrefecend­o suas trincheira­s – é como se Sherazade insinuasse ao senhor de sua morte que é preciso tirar os coturnos da guerra para sentir o frescor das gotículas matinais de orvalho pela campina. Assim, prossegue nossa narradora noturna, “quem nada planta, mesmo tendo sua terra umedecida, não vale nada. Quem não tem coração e elevação é árvore sem fruto.”

Imaginemos, agora, como os olhos negros de Sherazade fixaram-se no semblante do rei Xariar antes de lhe narrar – ou, melhor ainda, antes de lhe ensinar – que “quem desembainh­a a espada da injustiça acaba se matando com ela; quem não é equânime consigo próprio não se livra da tristeza; quem, por sua vez, libera a mão no doar tem o rosto iluminado pela luz. Aquele que não se previne do seu pecado o tem sempre a seu lado. A juventude é amamentada pela loucura, e a velhice é companheir­a da respeitabi­lidade e da placidez.”

É bem provável que, enquanto ouve tais máximas, o rei Xariar cofie a barba como a imagem tangível das ruminações que ficam dando cambalhota­s ao redor de si mesmas. Para não perder a bela oportunida­de de cicatrizar as feridas do soberano cada vez mais sensibiliz­ado, nossa heroína emenda uma brevíssima estória de um homem misterioso que caminhava a esmo por uma estrada vestido com uma roupa grosseira. Súbito, “o sapiente Luqmän [uma das fontes literárias de Sherazade] perguntou ao andarilho: ‘Quem és tu, ó homem?’ Respondeu: ‘Um filho de Adão’. Perguntei: ‘Qual o teu nome?’ Respondeu: ‘Tenho de ver como me chamarei’. Perguntei: ‘O que fazes?’ Respondeu: ‘Abandono o mal’”.

✽ É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA NA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY

A clássica fábula árabe de um rei traído e da mulher que tenta demovê-lo de sua vingança misógina por meio de contos ganha uma nova edição no Brasil

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SANI OL-MOLK/WIKIMEDIA COMMONS Arábia. Ilustração do artista francês Albert Robida (1848-1926) para o conto ‘Ali Babá e os Quarenta Ladrões’, das ‘Mil e Uma Noites’
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AUTOR: ANÔNIMO TRADUÇÃO: MAMEDE MUSTAFA JAROUCHE EDITORA:
BIBLIOTECA AZUL 464 PÁGINAS R$ 59,90
LIVRO DAS MIL E UMA NOITES AUTOR: ANÔNIMO TRADUÇÃO: MAMEDE MUSTAFA JAROUCHE EDITORA: BIBLIOTECA AZUL 464 PÁGINAS R$ 59,90
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Ocidentais. Acima, Sherazade por Sophie Anderson (1823-1903); e abaixo, ilustração do pintor francês Leon Carré (1878-1942)

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