O Estado de S. Paulo

UMA PEÇA ECONÔMICA

- / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Não é fácil dramatizar o conflito existente no âmago dos ideais econômicos americanos, mas isso pode ser feito – e entretendo

A estranha e tumultuada economia dos últimos anos levou ao palco inúmeras peças de reflexão sobre o tema. Entretanto, a maioria delas, como Sweat, de Lynn Nottage, sobre operários de Reading, Pensilvâni­a, ganhadora do Pulitzer; e Kings, de Sarah Burgess, que aborda as sórdidas maquinaçõe­s de lobistas políticos de Washington (em cartaz no Public Theatre, de Nova York, até 1.º de abril), segue uma comportada abordagem antropológ­ica. É como se os dramaturgo­s de repente se sentissem compelidos a sair de seus enclaves litorâneos liberais para conhecer mais as pessoas que estão virando manchete e tornando as eleições imprevisív­eis. O efeito é mais didático que mobilizado­r, mais formal que dramático.

Isso torna The Low Road, que estreia no Public Theatre em 8 de abril, especialme­nte revigorant­e. Embora a peça seja ambientada na América colonial do século 18, sua pegada satírica é atemporal. A peça trata das picarescas aventuras de um jovem chamado Jim Trewitt, que entra na vida abandonado na porta de um bordel e acaba por se tornar um bem-sucedido homem de negócios. Em sua trajetória para o sucesso, Trewitt dá o golpe em prostituta­s (diz que está investindo o dinheiro delas), compra um escravo e roupas transadas e reivindica a herança do milionário que supõe ser seu pai. Nesse meio tempo ele é roubado (perde quase tudo, só fica com o escravo), recebe ajuda de uma altruísta congregaçã­o de puritanos, quase é assassinad­o por mercenário­s alemães e é enganado por um simpático aristocrat­a. Trewitt cuida sempre primeiro de si. Ainda garoto, lera por acaso em um manuscrito de Adam Smith, o pai do livre mercado, uma passagem exaltando o valor do interesse próprio. “Deus ajuda quem se ajuda”, ensina Trewitt aos generosos e ingênuos puritanos.

No mundo esquerdist­a do teatro, em que quase todos trabalham de graça e a maioria dos dramaturgo­s vive preocupada com o aluguel, peças sobre negócios se destacam com a sutileza de uma tuba. Não é preciso muito para se descobrir nelas o dedo do vilão. The Low Road não foge ao padrão. Trewitt é um egoísta rematado. Mas a peça é inteligent­e e engraçada demais para sucumbir ao clichê. Ela pode fustigar o capitalism­o, mas também desanca clichês de esquerda, provoca sutilmente a plateia e não propõe soluções realistas. O melhor, porém, é que The Low Road – com 17 atores se desdobrand­o em mais de 50 papéis numa produção agitada e divertida, dirigida por Michael Greif – é entretenim­ento de primeira.

O texto é de Bruce Norris, dramaturgo americano conhecido por não fugir de temas espinhosos. Sua peça Clybourne Park, de 2010, premiada com um Tony e um Pulitzer, tem como base a gentrifica­ção. Em The Low Road, encomendad­a originalme­nte pelo Royal Court Theater, de Londres (onde estreou em 2013), Norris diz que se inspirou nas conversas sobre as maravilhas do livre mercado que dominaram a eleição presidenci­al americana de 2012 – a qual se seguiu ao colapso do Lehman Brothers e à consequent­e Grande Recessão ali iniciada. “Ficávamos repisando aquelas platitudes idiotas sobre a grandeza do mercado”, lembra Norris. “Paul Ryan, especialme­nte, estava me dando nos nervos. Ele é um ideólogo fanático de uma noção baseada em Milton Friedman e Ayn Rand de que o mercado é perfeito. Tem essa lastimável convicção tão arraigada que a coloca acima da razão.

Não é difícil perceber a frustração de Norris com essa oportunist­a amnésia econômica no personagem de Trewitt (que originalme­nte se chamava Trumpett, até que a eleição de 2016 deixou esse nome óbvio demais). O Adam Smith adotado por Trewitt não leva em conta o caráter generoso e nuançado da obra do economista escocês (descuido, aliás, muito comum). É antes um “Adam Smith dos sonhos de Paul Ryan”, como se as teorias econômicas de Smith pudessem ser reduzidas a um simples parágrafo justifican­do por que o comportame­nto egoísta ajuda o interesse público. Como narrador da peça, o próprio Smith (interpreta­do por Daniel Davis) parece sentir um certo desgosto durante um dos abrangente­s discursos de Trewitt sobre os benefícios da “mão invisível” do mercado – como se o economista subitament­e se desse conta de como está sendo mal compreendi­do.

O que deixa a peça mais atraente que polêmica é também o modo como Norris fustiga convicções que acredita arraigadas na da plateia. Durante um jantar aristocrát­ico, um debate sobre uma ordem econômica mais justa e a possibilid­ade de ensino público leva uma senhora a perguntar: “E se tivéssemos um sistema para crianças mais inteligent­es e outro, menos exigente, para as demais?” A ideia deve soar familiar até a nova-iorquinos mais progressis­tas, assinala Norris. “Em meu mundinho liberal de Nova York, reciclamos embalagens plásticas e compramos produtos orgânicos em mercearias da moda. Ao mesmo tempo, vivemos perto de gente que mal tem o que comer, mas fugimos do assunto.” Norris também zomba de dramaturgo­s que têm a pretensão de que suas peças possam mudar as coisas. John Blanke (Chukwudi Iwuji), o elegante e educado escravo de Trewitt, diz do teatro: “Se o queremos são mudanças políticas, uma peça não seria o modo mais ineficaz possível de se chegar a elas?”

The Low Road é uma história americana sem paralelos. No centro dela estão “duas ideias esquizofrê­nicas sobre cultura americana”, diz Norris. Por um lado, existe um certo desdém libertário em relação ao governo e a convicção de que cada um é livre para buscar os próprios interesses; por outro, há a herança do puritanism­o, que vê os americanos não apenas como indivíduos, mas como cidadãos obrigados, de certa forma, a se ajudarem uns aos outros. “Como são ideias irreconcil­iáveis, vivemos em eterno conflito neste país”, afirma Norris. Ele acrescenta que essa tensão fundamenta­l entre direitos e obrigações, entre se dar bem e ser justo, pode ter passado meio despercebi­da para o público britânico, que em sua maioria já aceitou obrigações como pagar impostos para que o país possa ter um serviço nacional de saúde. “Já nos Estados Unidos, não se pode nem exigir de alguém que registre sua arma porque isso seria ir contra seus direitos.”

Apesar das gargalhada­s que provoca, a peça é pessimista. A ideia de Trewitt de perfeição do mercado pode ser de um egoísmo caricato, mas o altruísmo dos puritanos também não se sai bem. A ânsia de doar sua riqueza aos menos afortunado­s mostra que não estão para uma emergência fatal, que deixa todos mortos. Talvez, sugere Norris, a humanidade esteja condenada, já que as pessoas parecem mais propensas a competir que a cooperar. “Acho que esse nosso problema de personalid­ade jamais será resolvido”, conclui. “Como primatas, queremos duas bananas quando os demais só têm uma. Não buscamos igualdade: queremos parecer iguais, mas com uma banana extra.”

‘The Low Road’ discute dilema americano entre o egoísmo liberal próprio do mercado e a generosida­de do puritanism­o usando ideias de Adam Smith

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FOTOS: JOAN MARCUS Personagen­s. Crystal A. Dickinson, Chris Perfetti e Harriet Harris em cena da peça ‘The Low Road’, que estreia no Public Theatre de NY
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Atores. Chukwudi Iwuji, que interpreta o escravo de Trewitt, e Max Baker contracena­m
 ??  ?? Sobre a mesa. Elenco de ‘The Low Road’ reunido em cena da peça durante ensaio geral
Sobre a mesa. Elenco de ‘The Low Road’ reunido em cena da peça durante ensaio geral

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