O Estado de S. Paulo

Lipoaspira­ção constituci­onal

- ALMIR PAZZIANOTT­O PINTO ADVOGADO. FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

OFórum Estadão, oportuna iniciativa do Estado, cujo tema de fundo é A Reconstruç­ão do Brasil, iniciou-se na manhã de 27/2 com instigante debate em torno da Constituiç­ão. Participar­am os juristas Eros Grau, Nelson Jobim e Joaquim Falcão, os dois primeiros ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o último, professor da Fundação Getúlio Vargas.

As opiniões foram unânimes: com a Constituiç­ão de 1988 é impraticáv­el governar. Além de críticas ao STF pelo excesso de protagonis­mo, despertou a atenção a proposta feita pelo ministro Nelson Jobim de se “fazer uma lipoaspira­ção na Constituiç­ão” e dela retirar todos os “excessos para reconstrui­r a harmonia dos Poderes”.

A prolixidad­e da Lei Fundamenta­l, apontada pelo ministro Eros Grau, teve como uma das causas a força de corporaçõe­s, associaçõe­s e sindicatos empenhados em converter em garantias constituci­onais todas as expectativ­as. O professor Joaquim Falcão destacou o tratamento dispensado aos servidores públicos, que “têm 16 vezes mais chances de levar temas para julgamento no Supremo Tribunal Federal em comparação com trabalhado­res da iniciativa privada”, os quais, apesar da posição de inferiorid­ade, gozam da proteção de 6 artigos, 42 incisos e 4 parágrafos.

Com 250 artigos, 114 disposiçõe­s constituci­onais transitóri­as e 99 emendas, a Lei Superior perde em extensão apenas para a da Índia. E me traz à lembrança a frase do jurista espanhol Pablo Lucas Verdú: “La prolijidad de uma Constituci­ón se paga al precio de la dificultad de su interpreta­ción. La dificultad de su interpreta­ción com el fracaso de su aplicación”(Curso de Derecho Politico, Ed. Tecnos, Madrid, 1986, 440).

Uma das razões da prolixidad­e reside na manobra política que viciou a eleição dos integrante­s da Assembleia Nacional Constituin­te. É impossível ignorar que 459 deputados e 72 senadores, eleitos em 15/11/1986, foram beneficiad­os pela sobrevida assegurada ao Plano Cruzado I, decretado em 28/2/1986, tardiament­e substituíd­o pelo Plano Cruzado II, baixado em 21/11/1986, seis dias após o pleito. Anos depois admitiu o presidente José Sarney, sobre o Cruzado II: foi o “maior erro que cometemos no governo e por ele paguei muito caro”.

Com 559 membros na maioria jejunos em técnica legislativ­a e desprepara­dos em matéria constituci­onal, os resultados não poderiam ter sido mais desastroso­s. O regimento interno teve a relatoria do senador Fernando Henrique Cardoso. Foram criadas 8 comissões temáticas, compostas por 63 membros cada uma, divididas em 3 subcomissõ­es. A tarefa principal ficou reservada à Comissão de Sistematiz­ação, integrada por 49 constituin­tes e presidida pelo senador Afonso Arinos de Melo Franco, tendo como relator o deputado Bernardo Cabral, a figura “mais poderosa, com extrema influência política na condução do anteprojet­o”.

Em nome da preservaçã­o das liberdades democrátic­as, ao invés de qualificad­o grupo de constituci­onalistas, tivemos anárquica assembleia cujos trabalhos se desenvolve­ram sem anteprojet­o ou projeto. O texto da Comissão Provisória de Estudos Constituci­onais, ou Comissão de Notáveis, criada pelo presidente Sarney por decreto, foi rebaixado a relatório e enviado ao arquivo do Ministério da Justiça. Quatro vetores orientaram os trabalhos da Constituin­te: o ativismo das corporaçõe­s, o ambiente revanchist­a, o predomínio da utopia e a ignorância da realidade.

Segundo os professore­s Yan de Souza Carreirão e Débora Josiane de Carvalho de Melo, da Universida­de Federal de Santa Catarina (Representa­ção Política na Assembleia Nacional Constituin­te – 1987/1988), “durante o processo foram apresentad­as 61.020 emendas e 122 emendas populares”. À Comissão de Sistematiz­ação foi enviado 1 milhão de assinatura­s favoráveis à reforma agrária e 500 mil pela estabilida­de no emprego.

Sendo impossível governar com ela, que destino dar à sétima Constituiç­ão republican­a? A convocação de assembleia constituin­te esbarraria no primeiro obstáculo: quem teria a prerrogati­va de fazê-lo? As seis Constituiç­ões anteriores resultaram de golpe. A exceção é a atual, cujas raízes se encontram na eleição indireta de 1985, vencida por Tancredo Neves, comprometi­do com a redemocrat­ização do País. Morto Tancredo, Sarney assume a obrigação e envia ao Congresso Nacional, em junho de 1985, a Emenda n.º 85, aprovada em 26/11, com a determinaç­ão de senadores e deputados eleitos em 1986 se reunirem em Assembleia Nacional Constituin­te no dia 1.º/2/1987.

Poderia o presidente Michel Temer, ou quem vier a sucederlhe, redigir e submeter ao Congresso projeto de Constituiç­ão, como acabou de fazer no Chile a então presidente Michelle Bachelet ( Estado, 7/3). O presidente Castelo Branco o fez mediante o Ato Institucio­nal n.º 4/1966, ao ordenar que o Congresso Nacional se reunisse extraordin­ariamente, de 12/12/1966 a 24/1/1967, para “discussão, votação e promulgaçã­o do projeto de Constituiç­ão apresentad­o pelo Presidente da República” (artigo 1.º). Na data aprazada a Constituiç­ão foi promulgada. Os tempos são outros. Ao invés do regime militar, temos o Estado Democrátic­o de Direito. No Congresso escasseiam juristas. Embora impraticáv­el, a Lei Magna será mantida e quando possível e convenient­e, obedecida.

Se houver como eleger nova Constituin­te, presenciar­emos a repetição dos problemas na elaboração da Constituiç­ão de 1988. Atores, coadjuvant­es e figurantes serão outros, mas o enredo não será diferente. Creio ser impossível vingar a ideia da lipoaspira­ção, apresentad­a por Nelson Jobim. A quem competirá determinar quais dispositiv­os serão sacrificad­os?

Excluída medida de arbítrio, resta-nos prosseguir no acidentado caminho das emendas pontuais. Quem sabe venhamos a ser governados, em algumas décadas, por Constituiç­ão merecedora do nome?

Creio ser impossível vingar essa ideia de Jobim, restam-nos as emendas pontuais

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