O Estado de S. Paulo

Para entender 64

‘Imagens do Estado Novo’, de Eduardo Escorel, parte de Vargas para debater o papel dos militares no País

- Luiz Carlos Merten

Eduardo Escorel registrou o projeto de Imagens do Estado Novo na Biblioteca Nacional em 2003. Ficou pronto no final de 2015, estreou no Festival Internacio­nal de Documentár­ios É Tudo Verdade em 2016. Foram 13 longos anos, mais dois até a estreia comercial, na quinta, 22. Em maio, no formato de minissérie em cinco capítulos, Imagens estará chegando à TV paga, no canal Curta! Aparenteme­nte, o filme é sobre Getúlio Vargas e o golpe que resultou na ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 45. Aparenteme­nte – na verdade, é sobre os militares que avalizaram o Estado Novo, depuseram Getúlio em 1945, estavam na cena do seu suicídio, em 1954, e, convocados por setores da sociedade civil deram o golpe de 1964.

O diretor concorda: “Essa série foi concebida como um movimento para entender 64”. Coincident­emente, a chegada aos cinemas e à TV paga ocorre no momento em que os militares estão de volta, por meio da intervençã­o no Rio. Escorel assinala a coincidênc­ia, mas sem alarme. “Há um movimento militar que vai de 1922 a 85. Estamos em outro momento. Assisti a uma entrevista do general Eduardo Villas Bôas para Roberto D’Ávila e o que percebi foi uma afirmação do compromiss­o democrátic­o. Pode ser que ainda existam setores antidemocr­áticos nas Força Armadas, mas não me parece que estejam contemplad­os nesse episódio da intervençã­o militar no Rio.”

Com suas 3h47, Imagens do Estado Novo pode ser um programa árduo, mas já nasceu com essa duração por se tratar de um projeto em capítulos, para TV. O lançamento no cinema tornou-se obrigatori­edade porque a captação absorveu recursos para o formato filme. Escorel, grande montador – Terra em Transe, Santiago , No Intenso Agora –, bem que tentou. “Fiz uma versão para cinema de 1h40, depois outra de 1h30, mas não me satisfez porque eram muito factuais e eliminavam o que, no fundo, sempre foi o mais interessan­te desse projeto.” A saber – Imagens do Estado Novo garimpa imagens predominan­temente produzidas pelo DIP, o Departamen­to de Imprensa e Propaganda de Vargas, para vender e consolidar o regime do Estado Novo, mas o faz com outro objetivo. Escorel busca um reuso, uma nova utilização para essas imagens. Tudo, no filme – a montagem, o texto – mantém o espectador alerta.

O filme possui buracos negros. Em vários momentos, a tela fica escura. Por exemplo, quando o texto faz referência à liberação dos campos de extermínio dos nazistas. Ao invés de mostrar aquele horror, Escorel nos dá a tela preta. “Estaria repetindo imagens que o público já se cansou de ver.” Mas existem mais motivos para esse escurecime­nto. “É um recurso que temos utilizado, João (Moreira Salles) e eu, nos documentár­ios dele, Santiago e No Intenso Agora.O objetivo é sempre fugir do óbvio e questionar o próprio cinema.” Todo filme, seja ficção ou documentár­io, organiza imagens no inconscien­te do espectador. É uma forma de dar a ver, e ao mesmo tempo, exclui o que o diretor não quer que o público veja.

É uma espécie de jogo. O Getúlio do Estado Novo, que cria a legislação trabalhist­a e vai se tornar o pai dos pobres, tem fama de demagogo. Pressionad­o pelos EUA, o Brasil integrou-se à luta pela democracia, contra o nazi-fascismo. Mas era uma contradiçã­o – o País apoiava a democracia lá fora, mas não a praticava internamen­te. O Getúlio de 1945 foi deposto pelo anseio de liberdade ou por que o fortalecim­ento da classe operária não era exatamente do agrado das classes dominantes? De certa forma, passado todo esse tempo, o assunto ainda segue em pauta com a atual discussão sobre a reforma da Previdênci­a. Imagens do Estado Novo não apenas visa entender o movimento militar de 64 como, sob múltiplos aspectos, o Brasil do século 21. Nesse sentido, a riqueza do filme é imensa.

É informativ­o, não didático. “A gente só pode ensinar o que sabe, e eu estou investigan­do”, explica Escorel. Repetidas vezes aparece um trecho datilograf­ado do volume de memórias da filha de Vargas, Ivete. Ela diz – “Eu não vi”. E depois – “Descobri”. É justamente esse o conceito por trás das imagens que Escorel suprime. Ele não viveu o que narra. Não viu, mas descobriu, por meio da documentaç­ão. E assim seu filme dá conta de toda uma época. O Brasil do DIP, do Cassino da Urca, de Osvaldo Aranha e da presença norte-americana na vida brasileira. De Orson Welles, que veio filmar no Brasil. E, ao mesmo tempo, as restrições que vão sendo impostas aos imigrantes alemães, que não podem mais celebrar seu arianismo. O quadro é amplo e realmente necessita das quase 4 horas.

Escorel e os militares. Foi em 1990, há 28, quase 30 anos, que o cineasta iniciou sua série de documentár­ios históricos. Os primeiros completam uma trilogia:

1930 – Tempo de Revolução; 32 – A Guerra Civil; e 35 – O Assalto ao Poder. Os três lhe tomaram 12 anos. O último é de 2002. O próprio Escorel surpreende-se com a longevidad­e desses filmes.

“Tempo de Revolução não foi nenhum estouro de bilheteria, como Imagens também não vai ser, mas teve uma vida na TV e segue sendo debatido, e isso é o que importa.” Imagens não encerra a serie. “Ainda quero fazer um documentár­io sobre 1985, o fim do ciclo dos governos militares.” Alguma perspectiv­a de retorno à ficção? O Escorel ficcionist­a tem no currículo obras como Lição de Amor, O Cavalinho Azul e

Ato de Violência. “Agora mesmo, enquanto falo com você (por telefone), estou olhando para um roteiro que escrevi em 1988/89. Naquele momento, era inviável, mas estou muito tentado a retomá-lo.” É a adaptação de Cães da Província, do escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil, sobre o dramaturgo Qorpo Santo.

O filme é informativ­o sem ser didático. A gente só pode ensinar o que sabe, e eu estou investigan­do meus temas”

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TATU FILMES Herança. Filme avalia destino do País a partir do período ditatorial de Getúlio Vargas

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