O Estado de S. Paulo

Retrato de país que se projeta do passado para o presente

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Como fazer falar a História? Historiado­res o fazem por meio de documentos, ou depoimento­s, no caso da História Oral. Cineastas recorrem a imagens. Mesmo que sejam imagens “oficiais”, elas podem dizer a “verdade” de um período.

Nessa aposta arriscada se envolve Eduardo Escorel com Imagens do Estado Novo 19301945, continuida­de de seu projeto de prospecção

histórica já desenvolvi­do em três filmes anteriores 1930 – Tempo de Revolução (1990), 32 – A Guerra Civil (1993) e 35 – Assalto ao Poder (2002).

De certa forma, Imagens do Estado Novo abarca os anteriores, avança em sua linha de análise e coloca a reflexão em outro patamar. Trata-se agora de abordar o longo período da ditadura de Getúlio Vargas que, como suas ambivalênc­ias e alcance, molda, para o bem e para o mal, o Brasil contemporâ­neo que conhecemos, com seus impasses, limites e contradiçõ­es.

Imagens, no entanto, não é um filme de tese. Alinha-se mais à vertente ensaística, como as de Chris Marker e Harun Farocki. Induz mais ao pensamento que à certeza. Trata de usar as imagens disponívei­s e fazê-las falar, à maneira de “sintomas”. Seja através do comentário em off (do próprio diretor), seja pela forma como essas imagens são montadas e justaposta­s, seja por este outro tipo de comentário incidental, a trilha sonora escolhida.

O resultado é uma enorme e deslumbran­te massa de informaçõe­s, que se apresenta ao espectador ao longo de três horas e quarenta e sete minutos de projeção, com um pequeno intervalo no meio. O volume de imagens (coletadas pelo pesquisado­r Antônio Venâncio) impression­a. São filmes oficiais, em sua maioria. Mas também imagens domésticas e fotogramas que registram a participaç­ão de cidadãos anônimos e comuns perdidos no turbilhão da História.

Justaposta­s as imagens, comentadas pelo tom neutro do narrador, e avivadas pelo calor da música (em especial, o recorrente samba-exaltação Brasil, de Benedito Lacerda e Aldo Cabral), a impressão que deixam é de profunda melancolia. O período, batizado de Estado Novo, como o estado fascista português, começa por um golpe militar e termina por outro. A habilidade estrategis­ta de Getúlio, entre o populismo e técnicas de manipulaçã­o importadas, é insuficien­te para mantêlo no poder quando o regime se torna historicam­ente

obsoleto no fim da 2ª Guerra Mundial. É deposto pelos mesmos militares que o apoiavam na véspera.

Embora “termine” em 1945, o filme ajunta uma coda sombria – imagens de João Goulart, Ministro do Trabalho, ao lado de Getúlio. Jango que, anos depois, assumiria a presidênci­a com a renúncia de Jânio Quadros e seria derrubado por outro golpe civil militar em 1964.

Talvez não fosse intenção de Escorel, mas quem adota o ensaísmo tem de estar aberto a conclusões tão provisória­s como inesperada­s. Essas imagens falam de um país de sociedade civil muito fraca, baixa convicção democrátic­a, tutelado por militares em vários períodos, com um povo às vezes apático, outras cheio de energia, mas no geral infantiliz­ado no trato com governante­s de viés autoritári­o e manipulado pelas classes dominantes. Retrato do passado, projetado para o presente.

O filme é desolador. E imprescind­ível.

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