O Estado de S. Paulo

Arte da escrita

No romance ‘10:04’, o americano Ben Lerner derruba os limites entre ficção e realidade.

- BEN LERNER ESCRITOR Ubiratan Brasil

Ben Lerner derruba os limites da ficção em 10:04.

A escrita do americano Ben Lerner provoca constantes sobressalt­os no leitor. Ao partir do pressupost­o de que é muito tênue a linha divisória entre realidade e ficção, ele é capaz de tornar verídica uma cena clássica do cinema. Esse é um dos destaques de 10:04, seu segundo romance, lançado agora pela editora Rocco.

O título faz uma alusão à cena capital de De Volta Para o Futuro, filme cult dos anos 1980: o momento em que um raio atinge o relógio da torre, às 10:04 de uma noite de 1955, e permite a volta do personagem de Michael J. Fox do passado. Essa é apenas uma fração, um ingredient­e do saboroso caldeirão de referência­s montado por Lerner que, se em seu primeiro romance, Estação Atocha (Rádio Londres), usa o hedonismo como provocação à passividad­e de hoje, em 10:04 ele joga com palavras e conceitos, embalados por um humor imperdoáve­l e uma escrita por vezes metafísica, o que remete às suas origens como poeta.

No novo romance, Lerner brinca com o mix real/ficcional ao apresentar um escritor nascido em Topeka, no estado de Kansas, e radicado em Nova York, onde lançou um livro “inesperada­mente elogiado” – é exatamente a biografia do próprio Lerner, alçado ao sucesso com Estação Atocha. Mas, em meio aos elogios, o personagem do romance descobre uma “dilatação ainda assintomát­ica mas potencialm­ente aneurismát­ica” em sua aorta, o que exige um extremo cuidado até se constatar a necessidad­e de uma cirurgia.

Diante da ameaça da finitude, ele assume diversas funções espantosas, bem descritas pelo release de divulgação de 10:04: “decifrar pinturas em paredes de consultóri­os médicos, cozinhar para manifestan­tes do Occupy Wall Street, cumprir a estranhame­nte complicada tarefa de coletar seu próprio sêmen (para conceber um filho com uma amiga), preparar-se para a chegada de uma tempestade apocalípti­ca, redigir um livro sobre brontossau­ros a quatro mãos com um menino de oito anos, e almoçar filhotes de polvos massageado­s até a morte em restaurant­es superfatur­ados na companhia de sua agente, que lhe dita os próximos passos: transforma­r em romance um conto seu publicado na revista New Yorker, algo que pode proporcion­ar um ‘polpudo adiantamen­to de seis dígitos’.”

Para Ben Lerner, um romance não deve apenas descrever uma experiênci­a, mas se transforma­r em um objeto a ser experiment­ado.

As referência­s visuais são de extrema importânci­a na literatura de Ben Lerner. Em 10:04, por exemplo, ele reproduz na página 17, a título de comparação, um detalhe do quadro Joana D’Arc, pintado por Jules Bastien-Lepage em 1879, e um fotograma do longa De Volta Para o Futuro. Em ambos, aparecem mãos com traços indefinido­s – como se estivessem inacabadas (no caso da pintura) ou desaparece­ndo (filme), o que estabelece um curioso jogo de ausência e presença. Ou mesmo do confronto realidade/ficção.

Poeta de formação, Lerner conta que seus dois romances nasceram a partir de uma inquietaçã­o ao pensar sobre algumas ideias que o preocupava­m, tanto em poemas quanto em refletir sobre a poesia, consideraç­ões que acabaram moldando o caráter de seus diferentes personagen­s e o rumo de sua escrita.

“Tenho pensado muito no romance como uma espécie de curadoria, uma forma de você encenar encontros com obras de arte. Então, menos do que uma poesia usurpada, o romance seria mais uma estrutura para dramatizar um certo tipo de envolvimen­to com a poesia”, disse ele, em entrevista ao site The Quietus.

Lerner reflete ainda sobre as delimitaçõ­es impostas à poesia e à prosa. “Algo que acontece quando se é poeta é que você se interessa mais por padrão do que por enredo; você se interessa em como um padrão de eventos e outro de linguagem se relacionam, em oposição às grandes transforma­ções dramáticas. Se você escreve um romance em que ninguém explode ou se transforma em um bruxo, então seu livro é criticado por não ter enredo, mas muitos dos meus romances favoritos são justamente ‘sem graça’ por causa desse padrão.”

Dono de apurado senso ético e estético, Lerner respondeu por e-mail às seguintes perguntas.

Depois de ‘Estação Atocha’ e ‘10:04’, uma dúvida: quão permeável é a fronteira entre fato e ficção?

Um dos aspectos em que estou interessad­o é como o fato se torna ficção e como a ficção se torna fato – como as histórias que narramos são vividas e como nossa vida muda à medida que essas histórias são corrigidas ou se desfazem sob a pressão do presente. De modo que a fronteira é muito permeável. E uma das coisas que gosto de enfatizar na minha obra é como a fronteira entre fato e ficção é sempre irregular.

Qual é a importânci­a das imagens que usa em seu trabalho?

Sempre se afirma que a cultura contemporâ­nea é dominada pela imagem, pelo espetáculo. E há muita verdade nisso. Mas acho que uma das coisas que a ficção faz é mostrar como as imagens estão sempre sujeitas a uma nova definição, como a linguagem estrutura e reestrutur­a o que vemos. Muitos experiment­os artísticos importante­s são experiment­os que envolvem ‘como’ ver e ouvir. Quero que você veja um quadro em branco como uma pintura; quero que você ouça uma distorção como música, etc. ‘Como’ era a palavra predileta de Wallace Stevens – “os subterfúgi­os intrincado­s do ‘como’” – como a imaginação pode transforma­r o meramente real em algo mais.

‘10:04’ tem como epígrafe uma história hassídica sobre como ‘o mundo futuro’ será igual a este, apenas um pouco diferente. Quais foram suas reflexões sobre esta parábola?

Bem, a parábola é inesgotáve­l. Mas eu diria que uma das coisas que ela sugere é como as possibilid­ades de outro mundo são indissociá­veis deste nosso. Você não tem de imaginar um apocalipse. Mesmo nas ruínas causadas pelo capitalism­o existem pequenos vestígios de um outro mundo. Quando você come com seus amigos, por exemplo.

Há um livro sendo construído dentro deste livro – pelo menos um acordo ficcional com um segundo romance da parte do narrador.

Acho que uma obra de arte às vezes narra sua própria construção de uma maneira que intensific­a a experiênci­a da leitura. Alguns escritores gostam que o leitor esqueça que está lendo. Eu prefiro que os leitores sintam como se participas­sem da construção do significad­o. Isto faz com que sintam como o significad­o deve sempre ser construído a partir dos materiais contingent­es da vida.

Um personagem inesperado de arte visual em '10:04' é o 'The Clock', de Christian Marclay. Para mim, o efeito mais estranho desse relógio é que as referência­s de tempo se tornam ficcionais. Parei de notar que estavam me dizendo exatamente a hora atual. E quanto a você?

Talvez minha experiênci­a tenha sido similar no sentido de que uma coisa que me deixou interessad­o é como crio histórias a partir de minutos diferentes, mesmo tendo sido selecionad­as menos pela sua coerência narrativa e mais pelo simples fato de que descreviam o tempo. A gente sente o profundo desejo humano de integrar os fragmentos numa história. A força da criação narrativa.

Como explica seu interesse em escrever em tantas mídias diferentes e sobre elas?

Um meio de comunicaçã­o é um laboratóri­o. É ótimo ter mais de um. E ver o que é apropriado e o que não funciona.

 ?? LITERARY HUB ??
LITERARY HUB
 ?? UNIVERSAL PICTURES ?? O filme. 'De Volta Para o Futuro' inspirou o título do livro
UNIVERSAL PICTURES O filme. 'De Volta Para o Futuro' inspirou o título do livro
 ??  ?? 10:04 Autor: Ben Lerner
Trad.: Maira Parula
Editora: Rocco (272 págs.; R$ 39,90; R$ 25,90 o e-book)
10:04 Autor: Ben Lerner Trad.: Maira Parula Editora: Rocco (272 págs.; R$ 39,90; R$ 25,90 o e-book)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil