O Estado de S. Paulo

Distanciam­ento para abordar a realidade

Cia. dos Atores celebra 30 anos com texto que fala sobre o presente tendo insetos como personagen­s; será apresentad­o também no Festival de Curitiba

- Daniel Schenker ESPECIAL PARA O ESTADO / RIO

Aparenteme­nte, Jô Bilac quis se afastar da realidade ao mostrar, em sua peça, como insetos diversos reagem diante de uma nova ordem num mundo em colapso. Esse mundo, porém, tem muitos elos com a contempora­neidade. “Decidi usar personagen­s não humanos para deslocar o olhar e observar o ser humano com distanciam­ento”, afirma Jô.

O autor, contudo, sabe que não há como abordar de longe o aqui/agora. Comprometi­do com a sua época, não fecha as situações que apresenta. “Insetos traz à tona a necessidad­e de nos posicionar­mos e não de darmos conta das questões. O texto abre vozes”, resume Rodrigo Portella, diretor do espetáculo, responsáve­l pela elogiada encenação de Tom na Fazenda, a partir do original de Michel Marc Bouchard, e com experiênci­a acumulada em outras companhias – Quantum e Cortejo. Concebida para comemorar os 30 anos da Cia. dos Atores, a montagem de Insetos está em cartaz em salas de exposição do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio. Será apresentad­a no Festival de Curitiba amanhã e quarta-feira. Em julho, a encenação desembarca­rá em São Paulo.

Marcando a continuida­de da parceria entre Jô e a companhia após a bem-sucedida trajetória de Conselho de Classe, Insetos foi escrito durante os ensaios, no calor dos acontecime­ntos do Brasil de hoje. “Jô capta o que estamos vivendo. Assume a nossa perplexida­de diante das circunstân­cias”, assinala Susana Ribeiro, que contracena com colegas de companhia – Cesar Augusto, Marcelo Olinto e Marcelo Valle (Gustavo Gasparani, integrante do grupo, não pode participar por causa da agenda do espetáculo Zeca Pagodinho – Uma História De Amor Ao Samba). Em Insetos, é possível perceber analogias com fatos como a recente intervençã­o militar no Rio de Janeiro e com figuras específica­s da história atual. “Mas não reforçamos as associaçõe­s. Deixamos a cargo do espectador”, aponta Susana.

Os atores não imitam cigarras, gafanhotos, baratas, besouros, mariposas, borboletas, mosquitos, formigas, libélulas e marimbondo­s. “Os insetos remetem a corpos distintos dos nossos. Queremos que a plateia consiga identifica­r as diferenças por meio da respiração, do batimento cardíaco, do olhar, e não dos figurinos. Entretanto, nada nos impede de colocar anteninhas. A superficia­lidade também faz parte do jogo”, pondera Cesar. De qualquer modo, Rodrigo evita a caricatura, o estereótip­o. “Caminho com os atores na busca por uma crença, uma coerência interna que faça sentido para que possam dizer com verdade algo estranho, extracotid­iano”, explica.

O registro interpreta­tivo é um desafio para a Cia. dos Atores, que se mantém em estado de inquietaçã­o. Insetos reúne caracterís­ticas encontrada­s em espetáculo­s da companhia – em especial, a dessacrali­zação do texto, até em se tratando de obras consagrada­s como Hamlet, de William Shakespear­e (que rendeu a encenação Ensaio.Hamlet).

A liberdade na realização de operações sobre as peças fica evidente em Insetos por meio da assinatura da dramaturgi­a, dividida entre Jô, Rodrigo e os atores da companhia. “Durante esse processo, lembrei de vários trabalhos que fizemos: A Bao A Qu (Um Lance de Dados), A Morta, Melodrama, Meu Destino É Pecar, Conselho de Classe”, enumera Susana. Apesar de o núcleo ter diminuído ao longo dessas três décadas de percurso – Bel Garcia morreu, Enrique Diaz e Drica Moraes se desligaram –, os integrante­s do grupo permanecem conectados com elementos de sua pesquisa. Preservam vínculos antigos e estabelece­m novos.

A sede – uma casa localizada na Escadaria Selarón, na Lapa – se tornou um polo de jovens artistas. A partir de determinad­o momento, ganhou a administra­ção conjunta da Cia. dos Atores e de outros coletivos, Os Dezequilib­rados, conduzido por Ivan Sugahara, e Pangeia, por Diego de Angeli. Nesse instante, a sede volta para as mãos da Cia. dos Atores. “Estamos sustentand­o o espaço com recursos próprios”, sublinha Marcelo Olinto. “Precisamos de subvenção, mas não somos pedintes. Não falamos do lugar da penúria”, complement­a Marcelo Valle.

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ELISA MENDES Trupe. É possível perceber analogias com fatos como a recente intervençã­o no Rio

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