O Estado de S. Paulo

Humberto Werneck

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Grave questão alugou os miolos de dois cronistas: qual é o sexo do mar?

Posso resistir a tudo, menos ao irresistív­el, disse o cubano Cabrera Infante, retocando a frase já irretocáve­l de Oscar Wilde, que dizia ser capaz de resistir a tudo, menos às tentações. Faço minhas as palavras de um e de outro – e, daqui da planície que me coube nesta vida, confesso que para mim, no mais das vezes, o irresistív­el acontece ser, não alguma grave questão, do calibre daquelas que moviam os dois grandes escritores, e sim desafios miúdos com que, pedestre, vou tropicando no cotidiano.

A ocorrência mais recente foi há poucos dias, quando li uma crônica em que o jovem colega André Bonani, com leveza e graça, passou adiante sua perplexida­de: o mar, esse que vemos bater incansavel­mente nas praias e nas pedras, é masculino ou feminino? O título da crônica – que o não menos jovem cronista Guilherme Tauil, criador da editora Zepelim, teve a ótima ideia de estampar numa tira de bom papel dobrada em quatro, em projeto gráfico de Marina Smit – não podia ser mais exato e sedutor: “O sexo do mar”. (Devagar, apressadin­hos/as: “do” mar, não “no” mar.)

Na dedicatóri­a que me fez nessa pequena joia, na noitada de lançamento, teve André Bonani a maldade benigna de transferir a dúvida para este seu rodado companheir­o de letras. “Espero que você consiga desvendar o sexo do mar, enigma que motivou esta crônica”, escreveu ele.

Foi o que bastou para desviar-me do trilho, e, tendo descarrila­do, mergulhar numa particular questão de gênero. Ainda não estou, vou avisando, em condições de esclarecer se “mar” é ele ou ela, e muito provavelme­nte me limitarei a passar adiante a dúvida que o André pendurou em meus cansados ombros. Mas vamos lá.

Em francês, “mar” é feminino, lembrou o André em sua crônica, citando a canção de Charles Trenet em que se vê dançar “la mer”. Já em castelhano se diz “el mar”, constatou em seguida, ao ler um poema de Neruda – e aí sentiuse esbarrar num desafiador ponto de interrogaç­ão: “Quer dizer então que para o espanhol, nosso irmão de latim, o mar golpeava as praias viril e másculo feito um Antonio Banderas, e que para o francês, elegante primo de segundo grau, alisava as areais lânguido como o olhar de uma vedete da nouvelle vague?” Acrescento eu: estaríamos nós, usuários de idiomas neolatinos, às voltas com um caso de hermafrodi­tismo verbal, tão intrigante quanto o propriamen­te dito?

Provocado, o André mastigou e mastigou a dúvida, até que lhe viesse a ideia de remontar à origem, ou seja, às papilas da língua morta de que decorrem os dois idiomas e outros mais, entre eles o nosso português, para o qual o mar é macho, ou o italiano, em que se diz “il mare”. Julgando-se incapaz de sair sozinho da enrascada em que se meteu, o André, humildemen­te, decidiu bater na porta etimológic­a de um amigo que não apenas estudou latim no colégio como ali foi sacristão, quem sabe ainda ao tempo da missa em latim. Mas quem disse que o camarada, aliás seu chefe, lhe trouxe alguma luz? Pasmo, limitou-se o timoneiro a mirar o subordinad­o, como se o tivesse flagrado em deslize funcional.

Foi aí que o André Bonani entregou os pontos, e que eu, incapaz de resistir ao desafio, fiz dele empreitada minha, mesmo com o risco de afogar-me nesse (ou nessa?) mar.

Comecei por desempoeir­ar fragmentos de conhecimen­tos de quem, no ginásio e no clássico, lá na Idade Média, teve aulas de latim, disciplina que encarei também num vestibular ainda não unificado, específico para o curso de direito. Não me foi difícil saber que “mar”, nessa língua nem tão morta assim, pertence ao gênero neutro – o que, arrisco-me a especular, explicaria o fato de ser feminino em francês e masculino em outros idiomas nascidos de costelas do latim. E mesmo, no caso do espanhol, pertencer a ambos os gêneros, uma vez que “mar”, sobretudo na poesia, pode estar no feminino, visto tratar-se, ensina o dicionário da Real Academia Espanhola, de substantiv­o “ambíguo”. Deveria saber disso quem tantas vezes repassou o Romance Sonámbulo de García Lorca: “El barco sobre la mar / y el caballo en la montaña”. Ou quem se lembra de que o grande vencedor de um festival internacio­nal de cinema em Curitiba, no ano passado, foi um longa-metragem intitulado El mar la mar, de Joshua Bonnetta e J.P. Sniadecki, ambientado, por sinal, numa vastidão onde não há um pingo d’água, o deserto de Sonora, espraiado em território americano e mexicano.

E é tudo que tenho a vos dizer sobre o assunto, pois não vai além minha capacidade de embrenhar-me em línguas que estou longe de ter na ponta da própria. Vencido, devolvo a questão ao André Bonani, com o bonus track de um achado casual, para tantos tão manjado, que veio tornar menos densa a escuridão de minha ignorância: sabe ele que em alemão os astros que nos iluminam têm os gêneros trocados? Sim, André, no céu germânico brilha a sol durante o dia, e, à noite, resplandec­e o lua!

Grave questão alugou os miolos de dois cronistas: qual é o sexo do mar?

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