O Estado de S. Paulo

Racionalid­ade jurídica à moda da casa

- ANGELA VIDAL GANDRA MARTINS

Em Direito, denominamo­s racionalid­ade jurídica (legal reasoning) o método de raciocínio e argumentaç­ão utilizada pelos operadores de Direito e, principalm­ente, pelas Cortes para aplicar os princípios e regras aos casos concretos, tendo em conta o sistema jurídico como um todo. Entre vitórias, derrotas, expectativ­as e esperança na consolidaç­ão do Estado Democrátic­o de Direito instituído pelo preâmbulo da nossa Constituiç­ão federal, poderíamos perguntar-nos com a mesma perplexida­de do filósofo Alasdair Macyntire, em sua obra: “Justiça? De quem? Qual a Racionalid­ade?”.

Celebramos recentemen­te uma vitória cidadã, ainda que edificada sob controvérs­ias hermenêuti­cas, comprovada­s pela decisão equilibrad­a no limite da balança de nosso Supremo Tribunal Federal. O fato é que o povo teve de sair às ruas para exigir um mínimo de consistênc­ia na aplicação do Direito diante de uma Corte que, mesmo sendo extremamen­te competente, encontra-se não só ferida em sua colegialid­ade, mas fragilizad­a em sua atividade interpreta­tiva, frustrando as expectativ­as de oferecer à Nação uma segurança jurídica linear.

Muitos têm falado sobre uma reforma do Judiciário ou em simplesmen­te exigir a efetiva independên­cia dos Poderes, fortalecen­do o Legislativ­o e limitando a atividade judicial à sua função de julgar e aplicar corretamen­te a lei como princípio de ordem e do justo político. Nesse sentido, gostaria de evocar uma solução mais viável para o momento, trazendo à reflexão um procedimen­to jurídico que facilita a manutenção saudável do sistema, que, em última análise, visa a orientar a conduta humana por meio de regras seguras – “boas cercas fazem bons vizinhos”, como afirmava Robert Frost – que possam promover o desenvolvi­mento livre, justo e harmônico da sociedade. O denominado legal reasoning aborda, em geral, uma sequência de passos reflexivos – questão, fatos, regras aplicáveis, costumes, valores, a análise propriamen­te dita e a conclusão ou decisão – que um juiz deveria seguir para decidir uma controvérs­ia. Dessa forma podemos avaliar melhor o ativismo judicial reinante em nosso país.

Em tese, ao receber uma questão – que deve ser efetivamen­te jurídica, já que poderia tratar-se de políticas públicas ou de problema moral que ultrapassa o espectro do Direito, preservand­o-se a liberdade pessoal –, o juiz deve ater-se somente aos fatos relevantes para o Direito, passando por eles, como afirma o jusfilósof­o norte-americano Lon Fuller, não como uma máquina, mas, sim, como um etnólogo, não como um estatístic­o; as provas também devem secundar as exigências do Direito para poderem sustentar efetivamen­te os argumentos racionais. A comprovaçã­o factual juridicame­nte bem conduzida facilita a visualizaç­ão das regras aplicáveis ao caso e sua correta interpreta­ção. Como afirma o professor supracitad­o: “As formas libertam” (forms liberate), pois conduzem à correta compreensã­o do direito devido.

Encontrand­o as regras aplicáveis, cabe interpretá-las em seu real sentido, conjugando a literalida­de que veicula o propósito, dentro do sistema doutrinári­o e jurisprude­ncial, para oferecer a moldura que orientará a determinat­io em cada caso.

Os costumes servirão de luz, não como pressão da opinião pública, mas por incorporar­em princípios cidadãos que os recomendam como verdadeiro­s e justos, merecendo presumidam­ente a sanção da lei, não somente pela repetitivi­dade, mas pela vontade e idoneidade do objeto. Nesse sentido, não se identifica­m com o mero fato social de cunho sociológic­o, mas com uma reta e reiterada tradição generaliza­da no tempo e no espaço. Os valores, por sua vez, aproximam-se da razoabilid­ade do homem comum – e não de uma visão pessoal que poderia ameaçar a segurança jurídica – e sua apreciação, ainda que despojada da covardia que Fuller denomina hobbesiana, por ter medo das mudanças necessária­s que acompanham os tempos, não deveria frustrar as expectativ­as éticas comunitári­as. De certa forma, costumes e valores fundamenta­m também o teor histórico e narrativo da interpreta­ção.

A análise da questão levará em conta os passos anteriores, imbuídos de estudo e reflexão, unificando-os no exercício de julgar propriamen­te dito. A reta interpreta­ção da doutrina existente – o que supõe também a formação acumulada – ilumina a análise rumo à conclusão. Por sua vez, a articulaçã­o da questão deve buscar a clareza necessária – tão desejado ingredient­e da juridicida­de! – para concluir o processo com a decisão, que dessa forma respeita o sistema jurídico vigente e a sociedade como um todo, pela segurança jurídica prometida pelo que se entende por Estado Democrátic­o de Direito, instituído por nossa Constituiç­ão.

Para tal, em nossa racionalid­ade jurídica, talvez coubessem alguns expurgos: não oferecer questões políticas próprias das Casas Legislativ­as ou preferênci­as morais à apreciação jurídica; exigir dos juízes que julguem de acordo com o Direito, interpreta­ndo-o jurídica e não politicame­nte, para oferecer aos cidadãos não caixinhas de surpresas, mas efetiva segurança jurídica, e principalm­ente que auxiliem, a partir do cumpriment­o estrito de sua função, a que cada Poder exercite seu próprio papel, leve de bagagem, ou seja, desprendid­o de interesses particular­es, que necessaria­mente acabam por conduzir à corrupção institucio­nal, para que possam prestar, como lhes cabe, o devido serviço à Nação.

A aplicação dessa racionalid­ade que respeita o Direito como tal é uma garantia do cidadão. Como comenta Lon Fuller sobre a conhecida afirmação do juiz Oliver Wendell Holmes, “o Direito é a profecia do que as Cortes farão de fato, e nada mais pretensios­o”, acrescenta­ndo que ,“se essa ordem é respeitada, das Cortes não nos deveríamos proteger!”.

Sua aplicação no estrito respeito ao Direito como tal é uma garantia do cidadão

DOUTORA EM FILOSOFIA DO DIREITO (UFRGS), SÓCIA DA ADVOCACIA GANDRA MARTINS, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOSOFIA E DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS

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