O Estado de S. Paulo

Nicarágua omite detalhes sobre morte de brasileira

Barreira. Diplomacia brasileira e defensores nicaraguen­ses de direitos humanos cobram dados sobre assassinat­o de pernambuca­na de 31 anos, mas não recebem nem detalhes do calibre da arma e número de disparos; paramilita­res a serviço de Ortega são suspeitos

- Maryórit Guevara ESPECIAL PARA O ESTADO MANÁGUA COLABOROU LU AIKO OTTA /

Diplomatas brasileiro­s e entidades de direitos humanos da Nicarágua enfrentam dificuldad­es para obter informaçõe­s do assassinat­o da brasileira Raynéia Gabrielle Lima em Manágua. A polícia não divulga detalhes do caso. ONGs denunciam omissão e acusam paramilita­res a serviço do governo de Daniel Ortega pelo crime.

O governo nicaraguen­se ignorou ontem instituiçõ­es locais de defesa dos direitos humanos e a diplomacia brasileira, que pedem informaçõe­s básicas sobre o assassinat­o na terça-feira da pernambuca­na Raynéia Gabrielle Lima, de 31 anos. As ONGs e o reitor da universida­de em que ela cursava Medicina sustentam que a estudante foi morta por paramilita­res a serviço do presidente Daniel Ortega. O governo diz que um segurança privado a matou, mas não detalha o calibre da arma e o número de tiros que a atingiram.

Gonzalo Carrión, defensor do Centro Nicaraguen­se de Direitos Humanos (CENIDH), estranhou a pressa com que foi divulgado na terça-feira pela polícia o primeiro e único comunicado de imprensa, em que se atribui a um vigilante a responsabi­lidade pela morte.

“A polícia desqualifi­cou apressadam­ente qualquer hipótese que vincule os paramilita­res ao fato, indicando que o alvo da investigaç­ão é um vigia. Mas há várias perguntas soltas. Que guarda, de que empresa, que tipo de arma tinha? Dentro do atual cenário de inseguranç­a, há leis que impedem seguranças de trabalhar armados”, questiona Carrión.

O crime ocorreu quando a estudante de Medicina do sexto ano e seu namorado, um nicaraguen­se, se dirigiam a uma casa no bairro Lomas de Montserrat, uma região nobre de Manágua. Esta região, onde vivem muitos funcionári­os do governo de Ortega, é controlada por paramilita­res. Um desses grupos de milicianos, segundo a versão sustentada pelos estudantes, vigiava a casa de Francisco López, tesoureiro da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que dá suporte a Ortega. Nesta área ocorreu a abordagem.

Moradores da região, que pediram anonimato por segurança, disseram ontem que perto das 23 horas de segunda-feira escutaram uma rajada com aproximada­mente dez tiros. A estudante brasileira dirigia um veículo e o namorado conduzia outro, atrás dela. A hipótese principal, sobre a qual a polícia não emitiu parecer, é que ambos foram intercepta­dos em um semáforo por homens encapuzado­s. A brasileira teria ficado nervosa e movimentad­o o veículo. A informação de que o carro foi metralhado não foi confirmada.

Até ontem, não se sabia o paradeiro do veículo de placa M 170620. O namorado da brasileira, que chegou a ser internado em choque após levá-la ao hospital, estava escondido ontem.

“Não há informação de quantos disparos a atingiram, nem sobre onde está o veículo, retirado rapidament­e do lugar. Não houve nem isolamento da cena do crime, algo comum neste tipo de delito. É preciso estar atento, porque dependemos da informação da polícia e é preciso suspeitar da polícia”, pondera Carrión.

Um comunicado docente da Universida­de Americana (UAM), onde Raynéia estudava, lamentou o assassinat­o e condenou a “repressão, a violência e a criminaliz­ação contra a população nicaraguen­se”. Os professore­s convocaram as autoridade­s universitá­rias a se pronunciar por todos os estudantes que tiveram de sair do país em razão da situação sociopolít­ica. Segundo relato de parentes, a brasileira não estava envolvida nos protestos estudantis contra Ortega.

O Instituto de Medicina Legal (IML) de Manágua emitiu um comunicado no qual afirma que a estudante morreu em razão de “feridas de arma de fogo no tórax e no abdômen”. Não foi detalhado quantos disparos a atingiram, nem o calibre da arma.

O IML afirmou que o cadáver será entregue às autoridade­s brasileira­s tão logo elas se apresentem para retirá-lo. O instituto acrescento­u que os requisitos para a remoção do corpo foram repassados a Marta Cuadra, delegada para assuntos consulares da embaixada brasileira.

A mÃe de Raynéia, Maria José da Costa, afirmou ontem que até o momento não tinha recebido informaçõe­s ou ajuda das autoridade­s brasileira­s. Em entrevista à Rádio Nacional de Brasília, programa da Empresa Brasil de Comunicaçã­o (EBC), Maria José disse que sua principal preocupaçã­o no momento é o retorno do corpo de Raynéia ao País para que ela possa ser enterrada de forma digna.

“Estou às cegas. Minha filha morreu há mais de 24 horas e ninguém toma providênci­as. Eu quero que ela volte o mais rápido possível para Pernambuco, para ter o enterro que merece”, disse Maria José ao programa Revista Brasil, da EBC.

O governo brasileiro tem tido dificuldad­es em obter informação sobre o caso. Convocada a dar explicaçõe­s na última terça-feira, a embaixador­a da Nicarágua no Brasil, Lorena Martínez, chegou ao Itamaraty com a nota distribuíd­a à imprensa pela Polícia Nacional de seu país. Não deu nenhum esclarecim­ento adicional, segundo fontes.

Nas notas que divulgou sobre o caso, o Itamaraty deixou clara sua insatisfaç­ão com as informaçõe­s recebidas. Na terça-feira, a pasta afirmou que a estudante foi “atingida por disparos circunstân­cias sobre os quais está buscando esclarecim­entos.”

O mesmo documento diz que o governo brasileiro “exorta as autoridade­s nicaraguen­ses a envidarem todos os esforços necessário­s para identifica­r e punir os responsáve­is pelo ato criminoso.” Em nota divulgada ontem, o Itamaraty volta a dizer que o governo e a embaixada têm insistido às autoridade­s nicaraguen­ses sobre a “necessidad­e imperiosa de pronta elucidação do caso.”

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OSWALDO RIVA/REUTERS-24/7/2018 Conflito. Criança nicaraguen­se segura uma cápsula de bala depois de confrontos entre manifestan­tes e mílicias favoráveis a Ortega no departamen­to de Jinotega, na Nicarágua
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FACEBOOK Vítima. A brasileira Raynéia Lima, morta na Nicarágua

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