O Estado de S. Paulo

‘Vinte Anos’ vê Cuba como estado de espírito

Alice de Andrade expande curta para documentar mudanças ocorridas no mundo e em especial na ilha

- Luiz Carlos Merten

Filha de Joaquim Pedro de Andrade, uma das figuras icônicas do Cinema Novo, Alice de Andrade coloca-se num plano de modéstia em relação ao pai. Diz que faz filmes para o público. “Diabo a Quatro foi execrado pela crítica, mas teve a maior audiência da TV Brasil.” Ela não descarta que venha a realizar obras mais ambiciosas, inclusive como linguagem. Por enquanto, prefere atuar no registro da simplicida­de. Estreia nesta quinta, 26, o documentár­io Vinte Anos, com o qual Alice concorreu no Festival de Brasília de 2016. Se dependesse do repórter, que, a propósito, era jurado, ela teria recebido o Candango principal. Teve de contentar-se apenas com o de melhor trilha.

Apenas? A trilha musical faz a costura do filme. É forte, é bela, dançante. É curioso que, neste dia, estejam estreando dois filmes brasileiro­s tão diversos, mas com tantos pontos em comum. Um é o já citado filme de Alice, Vinte Anos. Nos 90, ela foi a Cuba, a convite do Channel Four, que encomendou a 12 diretores, entre eles Raul Ruiz, Arthur Omar e Alice, curtas sobre o Sul colonizado. Cada diretor deveria fazer curta de até 24 min. Alice, que sempre foi ligada sentimenta­lmente à ilha, fez casting e filmou casais. Queria um filme com pelo menos 52 min., mas o Channel Four foi intransige­nte – 24. Ela fez Luna de Miel. Guardou o restante do material. Vinte Anos marca seu retorno a Cuba, e àqueles casais. No casting, foram 40. O filme documenta três.

O outro filme brasileiro que também estreia nesta quinta, e cuja origem é outro curta, é Alguma Coisa Assim, de Esmir Filho e Mariana Bastos. São maravilhos­os. Um documentár­io, uma ficção. Na verdade, quando se dispôs a voltar a Havana, Alice queria documentar as mudanças na ilha. Raul Castro sucedera o irmão Fidel, prometia mudanças e Alice estava a postos, pronta com sua câmera. O problema é que o processo estava sendo lentíssimo. Mas ocorreram coisas – o reatamento de relações com os EUA, sob Barack Obama, a visita do papa Francisco, o concerto dos Rolling Stones. Existem referência­s ao regime socialista, aos mutirões para construir casas, a Fidel. Mas o filme não está no lado do regime, e sim dos personagen­s. Com simplicida­de, mas inteligênc­ia, Alice decifra o enigma.

Cuba foi sempre idealizada pela esquerda e exorcizada pela direita. Fidel seria o próprio diabo, como ditador. Só malucos como Michael Moore seriam capazes de elogiar Cuba por seu sistema de saúde em Sicko, de 2007, inclusive levando à ilha, para tratamento, bombeiros heróis do 11 de Setembro que os planos de saúde dos EUA se recusavam a atender, por haverem aspirado pó e fumaça na desgraceir­a da implosão das torres gêmeas. Com diálogos do cubano Leonardo Padura, o francês Laurent Cantet fez, em 2014, Retorno a Ítaca. Reunidos no terraço de um prédio em Havana, personagen­s de volta do exílio e outros que permanecer­am na ilha discutiam os rumos da sociedade cubana. O filme é belíssimo, mas não mais que Vinte Anos. No longa de Alice de Andrade, Cuba é, acima de tudo, um estado de espírito. “Você captou a essência”, diz a diretora. Ela volta aos casais que, há 20 anos, celebravam sua lua de mel no momento em que os filhos estão se formando, tornando-se adultos e indo para o mundo.

Casas, prédios, ruas estão sendo reconstruí­dos. As pessoas também se reconstroe­m. Um casal separou-se, mas permanece unido, mesmo em casas separadas. Outro mudou-se para Miami. No que se refere aos filhos, uma garota foi ser solista na Orquestra Sinfônica da Costa Rica – e, depois de ganhar o Grammy em 2016, hoje toca no Japão. Mesmo os que se dispersam permanecem cubanos na essência. Um povo musical, sensorial, sensual. O tributo de Alice é a seus personagen­s, mas há algo de resistênci­a na atitude dessas pessoas que enfrentam as dificuldad­es sem perder a alegria.

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ARTHOUSE Cenas de um casamento. Encontro afetivo com o modo de vida cubano em dois tempos

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