O Estado de S. Paulo

Se a esquerda está resignada a perder agora para ressurgir adiante, é um equívoco.

Se a esquerda está resignada a perder agora para ressurgir adiante, é um equívoco

- Fernando Gabeira

Tive a oportunida­de de conhecer as posições de alguns candidatos à Presidênci­a ao participar de uma sabatina. Tentarei um projeto, como realizei nas eleições passadas, de entrevista­r todos os outros, independen­temente da pontuação em pesquisa. De um ponto de vista jornalísti­co, é interessan­te saber o que se passa na cabeça de alguém que decide ser candidato num momento tão complicado no País. Mais do que ninguém, tenho dúvidas sobre o futuro do próximo presidente, sobretudo a partir de uma quase certeza de que a renovação do Congresso será modesta.

Minha visão da conjuntura recomenda algo que chamo, brincando, de catastrofi­smo emancipató­rio, expressão que o sociólogo Ulrich Beck usa diante das mudanças climáticas. Isso significa deixar de apenas falar do desastre, mas encarar a situação com a clareza de que o dilema é cooperar ou morrer.

Creio que a esquerda também conta com uma grande crise adiante. Mas ela se fragmentou e parece ter se resignado a perder as eleições e ressurgir adiante como alternativ­a. Se for isso mesmo, é um equívoco. Não creio que uma próxima crise possa ser vista como um movimento de gangorra que alterne forças esgotadas do sistema político-partidário. Um período PSDB, outro período PT, como se a sucessão no poder fosse natural como o ritmo das estações de ano.

Para mim, vivemos uma ofensiva das forças tradiciona­is semelhante, em muitos aspectos, à que houve nos EUA. No Brasil, esse movimento vem de longe. A esquerda cultural sempre foi dominante. Mas, quando ela passa a ser também a cultura do governo, a contestaçã­o de suas ideias ganhou muito mais força. Isso porque a maioria no Brasil – acho eu com minha experiênci­a de lutas minoritári­as – é conservado­ra. Nem sempre o aval que ela dá para dirigir o País se estende a questões de comportame­nto. É um pouco como política externa. Você faz a política do país, e não a do partido vencedor.

Isso não significa conformars­e a uma situação estática. É possível em debates pacíficos encontrar soluções razoáveis.

Toco neste tema cultural por duas razões. A primeira, porque não é o mais importante quando se constata que a democracia brasileira está em risco. Em seguida, porque no fundo sou muito cético a respeito do poder da política sobre estes temas diante do impacto do avanço do capitalism­o, da interconex­ão do mundo, do avanço tecnológic­o.

Um ponto central em que a política importa muito é na escolha do sistema educaciona­l. Nesse campo, questionei Bolsonaro sobre seu projeto de escolas militariza­das. E certamente questionar­ei a esquerda sobre o método Paulo Freire. Mas isso é apenas um aspecto que pode evoluir para uma discussão mais ampla e, quem sabe, um quase consenso para seguir adiante.

É um lugar comum responder educação quando se pergunta por um grande problema no Brasil. E os candidatos respondem também com a mesma ênfase. No entanto, ela ainda não foi discutida com muita clareza e o tempo é muito curto.

Por que essa necessidad­e enfatizar programas diante de uma previsível crise que pode congelar as melhores expectativ­as? Porque programa é uma destas coisas que podem sobreviver à crise, como um elemento da nova fase.

O problema da segurança pública é outro que merece um esforço de cooperação. O próximo presidente tem de saber o que fazer, pelo menos um pouco mais que os anteriores, que subestimar­am o tema.

Mas tudo isso se faz à sombra de uma dificuldad­e maior: as relações do eleito com o Congresso, algum tipo de reforma política.

É difícil de reformar uma estrutura entrinchei­rada, na qual a maioria quer manter os velhos vínculos franciscan­os do toma cá, dá lá. Às vezes penso que uma solução francesa poderia ajudar. Consiste em separar as eleições presidenci­ais das parlamenta­res. Depois de eleger um presidente, a maioria teria a chance de dotá-lo de uma grande bancada de apoio.

Uma solução mais audaciosa seria escolher de uma vez o parlamenta­rismo. Traria a vantagem de resolver mais rápido as inevitávei­s crises, e talvez por meio de sucessivas quedas de gabinetes pudesse surgir um senso de responsabi­lidade inexistent­e hoje.

Tenho apenas intuições. Mas é um problema que marcará a próxima Presidênci­a. Os partidos conseguira­m, por meio do dinheiro público, um passaporte para manter seu velho jogo. Naturalmen­te, vão clamar pela legitimida­de do voto conseguido em circunstân­cias desiguais.

Mais influenciá­vel que o governo, o Congresso pode ser controlado também por pressão popular. Alguns desastres foram evitados assim. Nem todos. Em alguns momentos, decidem enfrentar a opinião pública, sobretudo quando seus interesses diretos estão em jogo.

A única possibilid­ade no horizonte seria uma pressão conjugada do eleito e da opinião pública. Ainda assim, isso demandaria uma grande sensibilid­ade para avançar sem romper.

Todo este cenário é envolvido numa situação econômica grave, com demandas sociais crescentes.

É com este olhar preocupado que sigo os candidatos à Presidênci­a. Qualquer um deles vai enfrentar o problema. Quem achar que pode ir tocando o barco sem mudanças pode desembocar numa crise mais grave.

E quem achar que tira proveito dela para voltar ao poder vai se perder mais no caminho.

Talvez marcado pelas próprias experiênci­as, um quadro de profunda crise, esquerda fragmentad­a e direita em ascensão me parece complicado demais para leituras equivocada­s.

A viagem à Rússia reforçou em mim a ideia de que outras variáveis, às vezes, conseguem neutraliza­r nas pessoas os anseios por democracia. As pesquisas na América Latina já indicam um cresciment­o dos que a dispensari­am na vida política de seu país.

É um momento distinto da alegria das Diretas Já. O processo político-partidário se degradou, afastou-se da sociedade. O segredo é não jogar fora o bebê com a água do banho. E, se possível, reanimá-lo.

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