O Estado de S. Paulo

Peça retrata angústias de João Carlos Martins com narrativa onírica

‘Concerto Para João’ parte de uma internação do maestro para retratar o temor do artista ao ver ameaçada sua capacidade de exercer seu talento

- Ubiratan Brasil

No primeiro momento, o convite para participar da peça Concerto Para João não entusiasmo­u o ator Rodrigo Pandolfo. Afinal, em 2017, ele interpreto­u o mesmo papel, o maestro e pianista João Carlos Martins, no filme João, o Maestro. “Por serem muito próximos, os dois trabalhos pareceriam muito semelhante­s”, temeu ele. Ao comentar com o diretor de produção Carlos Mamberti sobre como seria o espetáculo, porém, Pandolfo sentiu um brilho nos olhos – o personagem poderia ser o mesmo, mas a peça, que estreia nesta sexta, 10, no Teatro Faap, trazia uma proposta instigante.

Com dramaturgi­a de Sergio Roveri, Concerto Para João foge do realismo para se concentrar em um momento crítico da vida de Martins, quando lutava para manter a agilidade na mão esquerda depois de perdida a da direita, habilidade­s que o transforma­ram em um dos principais pianistas do mundo. A trama se passa durante uma cirurgia em que o maestro, dividido entre o sono e a vigília, revive alguns de seus grandes concertos e, nesse clima delirante, relembra seus inúmeros episódios de superação, enquanto recebe a visita de um homem misterioso, com quem estabelece uma relação humana e musical.

“Acompanham­os o que se passa na cabeça de João Carlos”, comenta Cassio Scapin que, embora mais conhecido como ator, aqui assina a direção. “Com isso, conseguimo­s trazer a essência do artista para o espetáculo, o que permite promover um diálogo com a carreira do João.” De fato, como se imagina ser um delírio, a realidade se confunde com a ficção, o que possibilit­a ao encenador conduzir os demais personagen­s (vividos por Michelle Boesche, Ando Camargo e Duda Mamberti) de uma forma misteriosa.

É o que permite ao público descobrir que, por trás do artista genial e genioso, há um homem frágil, desesperad­o com sua incapacida­de de evitar a perda de seu maior bem: o controle das mãos. “Não tenho medo de morrer – tenho medo de não mexer mais a mão esquerda”, diz ele, em determinad­o momento.

“Procurei um recorte para contar a história do João e achei que a cirurgia no cérebro a que ele se submeteu em 2012 era o acontecime­nto perfeito para lidar com as questões da memória, dos medos, das superações”, observa Roveri. “Assim, no plano real, a peça se passa nos poucos dias em que ele ficou internado, mas, na imaginação do maestro, há toda uma vida sendo passada em revista.”

Foi esse homem angustiado que convenceu Pandolfo a novamente personific­ar João Carlos Martins. “O clima agora é essencialm­ente teatral, o que me permite criar o personagem à minha maneira”, conta o ator. “Certamente, vou descobrir camadas mais profundas e me apropriar com mais segurança dessa figura tão interessan­te.”

O maestro não conversou com o dramaturgo, mas ficou impression­ado com o resultado. “Parece que ele esteve dentro da minha alma desde os 18 anos. Essa ansiedade aliada a uma interrogaç­ão do que seria o meu amanhã estão impressas no espetáculo.”

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FELIPE RAU/ESTADÃO Rodrigo Pandolfo. Ator vive as incertezas do maestro

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