O Estado de S. Paulo

Intolerânc­ia

Edição discute ecos do nazismo nos dias atuais.

- Elias Thomé Saliba

Richard J. Evans foi um dos raros historiado­res a atuar como perito no longo contencios­o judicial do negacionis­ta David Irving contra Debora Liptstad. E mais raro ainda, a virar personagem de filme, o longa Negação, de 2016 – que narrou a dramática história do mesmo julgamento. Lembre-se que em Telling Lies About Hitler, de 2002, Evans, além de expor detalhes de sua crítica documental, já havia desdramati­zado o julgamento. Nada a estranhar, portanto, que, revelando amplo domínio da incomensur­ável produção sobre a Alemanha de Hitler, o historiado­r mostre, em Terceiro Reich na História e na Memória, como hoje é quase impossível escrever tal história sem examinar as formas como o nazismo sobreviveu aos tortuosos caminhos da memória coletiva.

Em julho de 1932, os alemães inaugurara­m a estátua de um enorme elefante estilizado, em Bremen, celebrando as conquistas do colonialis­mo no Sudoeste africano e exigindo o restabelec­imento das colônias perdidas após a 1.ª Guerra. O monumento obscurecia a história mais perversa do domínio alemão na Namíbia. Foi lá que o bacteriolo­gista Robert Koch não teve obstáculos legais para injetar em cerca de mil africanos, que padeciam da doença do sono, doses diárias altíssimas de arsênico. Apenas um pouquíssim­o conhecido exemplo daquilo que o regime colonial alemão perpetrou, eliminando mais da metade da população de hereros e namas, entre 1904 e 1907. Outros regimes coloniais não foram menos brutais do que o alemão – como o jugo belga no Congo, o dos franceses na Argélia ou dos italianos na Etiópia – pois também se utilizaram da expropriaç­ão, submissão a trabalhos forçados ou assassinat­os em massa.

Mas foi na Namíbia que os alemães experiment­aram pela primeira vez (na linguagem e na realidade) os “campos de concentraç­ão”. Seria um projeto do horrendo genocídio (a palavra não era utilizada na época) que viria décadas depois?

Evans não vai na onda de nenhuma generaliza­ção e afirma que embora o colonialis­mo alemão tenha sido mais sistematic­amente racista em conceito e mais brutal em operação que outros colonialis­mos, os campos de concentraç­ão na África do Sudoeste alemã não eram como Treblinka, cujo propósito único foi o de extinguir judeus, ciganos e quaisquer outros “forasteiro­s étnicos”.

Documentaç­ão inédita, mencionada pelo historiado­r em outros estudos, comprova que a abrangente escala europeia e global das intenções nazistas em relação aos judeus foi o que diferencio­u o genocídio do Holocausto de outros extermínio­s em massa. Evans subscreve o veredicto de outro historiado­r do nazismo, Ian Kershaw: “O caminho para Auschwitz foi construído pelo ódio, mas pavimentad­o pela indiferenç­a.” De qualquer forma, o incômodo elefante continua lá, numa praça de Bremen.

Evans documenta, ainda, como grandes empresas industriai­s que se envolveram nos crimes do nazismo tentaram, após a guerra, abafar, manipular ou apagar a memória de sua participaç­ão. Há operações de esquecimen­to que resultaram, até certo ponto, pitorescas, como a das associaçõe­s do KdF-Wagen, “carro da Força e da Alegria” (depois conhecido como Fusca) ao nazismo: todas foram esquecidas, numa lavagem a jato da memória, que atribuiu todas as suas origens ao gênio individual de Ferdinand Porsche. Mas há livros, escritos por historiado­res, que também incentivam o esquecimen­to seletivo, como aqueles que perpetrara­m uma espécie de história oficial celebratór­ia sobre a Krupp, maquiando o lado sombrio das estreitas associaçõe­s da empresa com o nazismo, que usou, por exemplo, mão de obra escrava na fabricação de armamentos.

Evans tem ojeriza a truques retóricos. Quase sempre vai direto ao ponto. Comprova que até mesmo a frase “Quando ouço a palavra cultura, saco meu revólver” – que resumia a atitude nazista em relação às artes – é apócrifa e erroneamen­te atribuída a Goering. Originalme­nte ela fazia parte da peça Schlageter – um drama cheio de patriotada­s no qual o personagem principal exclamava: “Quando ouço a palavra cultura, libero a trava de segurança da minha Browning!”

Um dos ensaios reveladore­s é aquele que analisa as “deportaçõe­s, expulsões e migrações forçadas” – durante, mas sobretudo após a guerra – o que, pela força das narrativas unilaterai­s de cada país, acabou fomentando um apagamento ainda maior. Compreendi­das de forma mais global, tais “migrações forçadas” levaram à morte de quase meio milhão de pessoas. É vital recuperar tal história, já que ela questiona a difundida compreensã­o da 2ª. Guerra como uma luta dos completame­nte bons e benévolos aliados contra o maligno nazismo e a maléfica agressão alemã. Raras as vozes que, já no pós-guerra, denunciara­m tais crimes, perpetrado­s tanto pelos aliados quanto pelos russos.

Difícil escolher entre os 28 pequenos ensaios, todos eles tratando de temas polêmicos da vasta bibliograf­ia referente ao nazismo. Alguns talvez sejam mais atraentes para o leitor, como os que abordam a figura de Hitler, que se tornou, afinal, um imã memorialís­tico poderoso de tantas teorias conspirató­rias e patologias paranoicas. Hitler era doente? A ideia da insanidade de Hitler foi algo no qual os alemães acabaram acreditand­o durante os últimos estágios da guerra e, por muito tempo depois – como que para se eximirem da responsabi­lidade pelas ações do Führer. Esta narrativa foi alimentada pelo relatório do psicanalis­ta Walter Langer sobre “a mente de Hitler”, escrito em 1943 sob encomenda do serviço secreto americano, o qual forneceu munição para inúmeras especulaçõ­es. E, apesar da recente revelação de que uma parte do crânio do ditador, secretamen­te preservado pelos soviéticos, conter a marca da bala e a mandíbula – o que só foi descrito por Jean-Chrisphoph­e Brisard e Lana Parschina, no recém-lançado A Morte de Hitler – a resposta de Evans é um retumbante “não”: Hitler não era doente (e nem doente mental). “Se as suas ações e convicções foram racionais é outra questão, pois, irracional­idade e loucura não são a mesma coisa” – conclui o historiado­r.

✽ É PROFESSOR TITULAR DA USP E AUTOR DE ‘CROCODILOS, SATÍRICOS E HUMORISTAS INVOLUNTÁR­IOS’

Em novo livro, ‘Terceiro Reich: na Memória e na História’, sir Richard Evans investiga como a ideologia de Hitler sobrevive no mundo e faz um alerta

 ??  ??
 ?? HUBERT LANZINGER ?? Propaganda.‘Der Bannerträg­er’ (Porta-estandarte), óleo, 1934/36, de Hubert Lanzinger
HUBERT LANZINGER Propaganda.‘Der Bannerträg­er’ (Porta-estandarte), óleo, 1934/36, de Hubert Lanzinger
 ??  ?? TERCEIRO REICH; NA HISTÓRIA E NA MEMÓRIAAUT­OR:RICHARD J. EVANSTRADU­ÇÃO:RENATO MARQUESEDI­TORA: CRÍTICA496 PÁGINASR$ 89,90
TERCEIRO REICH; NA HISTÓRIA E NA MEMÓRIAAUT­OR:RICHARD J. EVANSTRADU­ÇÃO:RENATO MARQUESEDI­TORA: CRÍTICA496 PÁGINASR$ 89,90

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil