O Estado de S. Paulo

Crime organizado é entrave na segurança

Crise levou ao uso das Forças Armadas para o controle da criminalid­ade e à escalada de assassinat­os no País; gestão do setor deve mudar

- Marcelo Godoy

Série mostra as prioridade­s do País para os próximos anos. Conter a criminalid­ade e a escalada de assassinat­os é uma delas.

Os dois bandidos chegaram em uma motociclet­a e atiraram na cabeça da vítima. Fugiram com a arma do soldado Kelves Freitas de Brito, do 3.º Batalhão da PM. A morte do policial no Rio Grande do Norte resume a crise da Segurança Pública no País que desafia os candidatos à Presidênci­a. Brito foi o 14.º integrante da corporação executado neste ano no Estado. Bandidos do Primeiro Comando da Capital (PCC) soltaram rojões em comemoraçã­o. O assassinat­o era uma reação à tentativa do Estado de impor disciplina no presídio de Alcaçuz, na região de Natal.

O cresciment­o do crime organizado acontece em um País que tem prisões com taxa de ocupação média de 197% – há 729 mil detentos no País. A população carcerária é composta na maioria por homens de 18 a 29 anos (55%) presos por roubo (45%) ou por tráfico (28%). A disputa pelas rotas da droga no Brasil é apontada por especialis­tas em Segurança, na segunda reportagem da série Desafios do Novo Presidente, como uma das causas da escalada das mortes violentas, principalm­ente, no Norte e no Nordeste, da multiplica­ção de crimes patrimonia­is e das execuções de policiais.

Com a crise, surgiram repostas, como o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e o uso de tropas do Exército nas ruas. Ela também trouxe o aumento da violência letal das polícias. Tudo em meio a uma estrutura de Segurança Pública definida pela Constituiç­ão de 1988, que, para os estudiosos, exclui do sistema as guardas civis e divide o setor de acordo com interesses corporativ­os em vez de critérios de eficiência no combate ao crime.

Um retrato dessa situação pode ser consultado no anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Divulgado em 9 de agosto, ele expôs um recorde: o País tivera 63.880 assassinat­os em 2017. Foi a segunda vez que o Brasil registrava um índice de homicídios por 100 mil habitantes superior a 30 (30,8).

Em junho, o presidente Michel Temer sancionara a lei que criou o Susp. Era a maior aposta legislativ­a para controlar a crise na área que, pela primeira vez, não levava apenas à tradiciona­l resposta do endurecime­nto das penas e de uso de balas e cassetetes. O foco passou a ser a gestão da Segurança. As polícias procuram, agora, eficiência, dinheiro e tecnologia para combater o crime.

Com o Susp, as polícias terão bancos de dados integrados para compartilh­ar informaçõe­s e padronizar o registro de casos. Estados e União vão elaborar planos de Segurança com validade de dez anos, consultand­o municípios, o Poder Judiciário e o Ministério Público. Parte da renda de loterias federais vai financiar o setor, subordinad­o ao Ministério da Segurança Pública.

Ganhos. “Podemos ter ganhos de curto prazo com projetos que ajudam o desenvolvi­mento de aspectos importante­s de estrutura de cooperação entre as polícias. E uma das coisas é o boletim de ocorrência único”, disse o pesquisado­r Leandro Piquet Carneiro, coordenado­r da área de segurança da campanha de Geraldo Alckmin (PSDB).

A troca de informaçõe­s entre as polícias foi a base da Operação Echelon, que cumpriu 59 mandados de busca, em 14 de junho, em 14 Estados. Os 75 acusados que tiveram as prisões decretada eram do Resumo dos Estados, setor do PCC responsáve­l pelos 20 mil integrante­s do grupo espalhados fora de São Paulo. Foi dessa estrutura que saiu a ordem para matar o soldado Brito.

“O PCC se expandiu criando parceiros em diversos Estados e tentando estabelece­r uma ordem e uma ética no mercado do crime. O PCC não busca, necessaria­mente, o monopólio da droga. Ele tenta organizar o mercado como uma espécie de agência reguladora e permite que os parceiros tenham seus negócios, desde que respeitem as normas”, afirmou o cientista político Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Símbolo da expansão do crime organizado pelo País, o PCC multiplico­u por seis seu tamanho nos últimos quatro anos. Passou a usar doleiros para movimentar seu dinheiro e atuar em cinco países da América do Sul. Ao se expandir, entrou em conflitos com gangues regionais que se aliaram ao Comando Vermelho, do Rio.

No Rio Grande do Norte, a guerra levou ao uso de tropa das Forças Armadas em 2016 e em 2017 – o uso do Exército para o combate ao crime organizado aumentou três vezes nesta década em comparação aos anos 1990. Além do Rio Grande do Norte, o Exército foi mobilizado para intervir na Segurança no Rio. “Essas ações são mal avaliadas. Não se sabe quanto custam e seus resultados efetivos”, disse o pesquisado­r Túlio Kahn.

Para Paes Manso, um aspecto da ocupação de áreas pelas forças de segurança é “quebrar os traficante­s quando usam violência”. “Se há mortes em um bairro, você tem de induzir o bandido a não matar mais. E isso você faz com operação saturação.” A presença da polícia no terreno impede o tráfico de vender por meses. “Aí você impõe um novo hábito na cena criminal, que é, se o bandido quer ganhar dinheiro – e ele tem de ganhar –, ele terá de evitar ser violento.”

Mortes. A chegada do crime organizado coincidiu com o aumento de assassinat­os no Rio Grande do Norte. O anuário do Fórum mostra que, de 2006 a 2017, os assassinat­os aumentaram 293% no Estado – o maior cresciment­o registrado no País. De 549 homicídios em 2005, o Estado contou 1.863 casos em 2017. A situação encurralou as forças de segurança. Em 2017, 18 policiais foram assassinad­os no Estado. Só no primeiro semestre, já haviam sido mortos 15, entre eles o soldado Brito.

Os assassinos do PM não foram identifica­dos ou presos em flagrante, assim como 92% dos autores desse crime no País. “Esses índices de esclarecim­entos baixos comprovam a necessidad­e de se integrar os recursos”, disse Kahn. Hoje, a União responde por 11,4% dos R$ 84,7 bilhões gastos com Segurança no País, os Estados, por 82,4 % e os municípios, por 6%.

Para a maioria dos especialis­tas, só a integração e o chamado ciclo completo das polícias vão acabar com a ineficiênc­ia. “Nosso modelo é quase exclusivo no mundo. Em toda polícia há um ramo uniformiza­do e outro de investigaç­ão, com um mesmo sistema de entrada, troca de dados e informaçõe­s”, afirmou Kahn. Para ele, hoje, a maioria do conhecimen­to dos profission­ais da área é jurídico.

“Um policial pode entender de Código Penal e Constituiç­ão, mas pouco de Segurança Pública. Há uma cultura bachareles­ca, que acha que pode resolver o problema de Segurança.” Para Kahn, a polícia deve seguir o exemplo das Forças Armadas, que se profission­alizaram e se livraram da cultura bachareles­ca. “Precisamos incorporar outros conhecimen­tos à polícia.”

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FELIPE RAU/ESTADÃO Ação. O Sargento Gemelgo é um dos 80 mil homens que a PM tem para combater crime
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