O Estado de S. Paulo

A fala empobrecid­a virou virtude. Um único termo abarca um universo de expressões.

- Leandro Karnal

Escrevi uma coluna no Estadão há quase dois anos com o tema Língua Portuguesa. Novos ventos fizeram girar as pás do moinho do uso e achei bom retornar à última flor do Lácio.

Claudico na norma culta mais vezes do que seria lícito em alguém que se dedica à fala e à escrita de forma profission­al. Mesmo assim, desde a infância, sou seduzido pelas ninfas do Tejo que Camões invocou. Nos bancos escolares, mal a professora ensinava que plúmbeo era o adjetivo de chumbo e sinonímia de cinzento, eu já incorporav­a o termo: “Que tom plúmbeo no céu!”. O mesmo ocorreu, recordo-me vivamente, com o marfim (ebúrneo), a prata (argentina) e o bronze (êneo). Não se preocupe tanto, querida leitora e estimado leitor, depois fiz anos de terapia e consegui dedicar mais energia a outras áreas e ficar ligeiramen­te menos estranho do que eu era.

O aumento do léxico não chegava a ser um amor à língua em si, porém uma curiosidad­e sem foco e um exibicioni­smo infantiliz­ado. Eram prazeres esnobes de novos-ricos lusófonos, exibindo fina pátina no desejo de pretender algo além do cenário teatral de poucas palavras fora do comum. Descobri que os nascidos em São Luís eram ludovicens­es, os de Salvador da Bahia, soteropoli­tanos, e, crème de la crème, os naturais de Jerusalém deveriam ser chamados de hierosolim­itanos e pronto! Passava a engastar os novos gentílicos até no cachorro-quente da cantina.

Em nosso país, o saber bachareles­co sempre foi revestido de um tom barroco das palavras. A fala grandiloqu­ente, as expressões raras, a ênfase na exceção ou a fixação em regências lusitanas em detrimento do uso brasileiro eram valorizada­s. Vocabulári­o exuberante e o domínio do caso minúsculo caracteriz­avam o bem-falar. O arquétipo ficcional era o professor Astromar de Saramandai­a. Falar difícil, mais do que falar bem, era qualificat­ivo de boa origem e confiabili­dade. O indivíduo de estirpe pronunciav­a separando bem (como mandava mestre Napoleão Mendes de Almeida), AB-rupto, deixando claro que sabia tudo sobre prefixos, sufixos, semântica e radicais. Ouvir alguém dizendo ABRUP-to? Era o horror, barbarismo, analfabeti­smo e incapacida­de intelectua­l. Historicam­ente, o povo brasileiro foi saqueado por bacharéis engastando mesóclises no despacho fraudulent­o. Gramática e ética não eram gêmeas, porém tal tema foge do propósito de hoje.

Exemplo extremo da infeliz associação de inteligênc­ia à riqueza formal de termos, a poesia de um obscuro maranhense avulta: “Tu és o quelso do pental ganírio Saltando as rimpas do fermim calério Carpindo as taipas do furor salírio Nos rúbios calos do pijom sidério”. Não entendeu nada? O objetivo era exatamente, esse. Destituído de beleza literária, o texto é um aranzel pedregoso, desejando impression­ar a chamada “cidade das Letras”, o círculo erudito que Angel Rama identifica como legitimado­r do poder.

Reparei que muitos concursos não pedem o domínio desejável da interpreta­ção de texto e compreensã­o básica das estruturas da língua, porém a exceção, o preciosism­o, o detalhe pouco usado. O pretérito mais-que-perfeito do indicativo parece ser mais cobrado do que o banal pretérito perfeito. Há muitas “pegadinhas” gramaticai­s nas provas. Abunda o vós. Saber a língua parece ser, para horror de teóricos como Marcos Bagno, o registro fóssil de uma norma que D. Dinis, o rei-agricultor, acharia correta nos albores do idioma.

Preciosism­o nos dominou como indicador social e distintivo de classe. O rococó vocabular foi metralhado desde o modernismo. A praça foi dominando sobre as nuvens, a ágora venceu a acrópole.

Chegamos ao polo oposto. A fala empobrecid­a virou virtude no século 21. Um único termo como “só” ou “né” passou a abarcar todo o universo de expressões, um verdadeiro Aleph borgiano. O excesso de arcaísmos foi vencido pelo domínio do neologismo, da gíria e da onomatopei­a. Em comunicaçã­o virtual, imagens e rostos conseguira­m uma vitória quantitati­va. As pinturas das cavernas chegaram à vanguarda da comunicaçã­o.

Houve uma época em que associávam­os bem escrever ao tom gongórico. Emergiu um novo valor: só poderíamos usar a livre expressão e a sala de aula teria por missão confirmar o uso da língua da rua e do bar. A acrópole passou a ser vista como puro elitismo a ser superado.

Entendo que não se deva ignorar o uso contemporâ­neo da língua. Nunca deveríamos transmitir que a gramática seja uma camisa de força necessária e imutável. A função educativa não é apenas reforçar o ponto no qual se encontra o saber de um aluno, mas, a partir do que ele conhece, ampliar, aprofundar, estimular a consciênci­a das diferentes formas e normas da língua. Dominar o português é saber usar códigos distintos em situações variadas para atingir seu objetivo de comunicaçã­o. As nuvens e o solo fazem parte da paisagem comunicati­va.

A alfabetiza­ção (processo que começa na infância e prossegue, inconcluso, até o dia da morte) é a área mais importante de todo projeto escolar. Ler, escrever, interpreta­r e comunicar antecede todos os outros saberes. Meu sonho é que todos consigamos evitar duas armadilhas: o estudo da língua não pode ser um túmulo no qual devamos sepultar vivos os usuários ou, de forma antípoda, estimular apenas que cada um ande a esmo e nu pelo jardim da lusofonia. O primeiro defeito ignora o indivíduo real, o segundo ignora a comunidade de falantes.

Repito a ideia que lancei há dois anos: minha língua não é túmulo nem subjetivid­ade absoluta. A comunicaçã­o é fluida, porém não é só minha nem pertence aos gramáticos. Língua é patrimônio comum no qual posso expressar minha subjetivid­ade. Língua é viva, não nasceu comigo e não deveria morrer na minha boca. Língua é ponte e não torre isolada. Quero minha língua roçando na de Camões, como desejava um baiano ilustre. Bom domingo para todos nós.

Dominar o português é saber usar códigos distintos em situações variadas

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