O Estado de S. Paulo

Um passado que teima em se manter presente

- •✽ FRANCISCO FERRAZ

Mais uma vez o Brasil “dá de cara” com a parede de sua estrutura patrimonia­l a bloquear o avanço para a prosperida­de prometida ao gigante adormecido. Mais uma vez repetimos nosso periódico retorno à situação em que nos encontráva­mos antes. Mais uma vez somos chamados a encarar os mesmos impasses, os mesmos impediment­os, os mesmos problemas, só que maiores e mais graves. Reduzido ao essencial, nosso muro dos anos 80/90 é praticamen­te o mesmo em 2018. Os personagen­s não são os mesmos, mas no essencial não são diferentes.

Vivíamos então a época dos pacotes, dos planos econômicos que se propunham a pôr ordem na casa de uma vez por todas e adquiriam o nome de seus autores: depois do Plano Cruzado I e II, o Plano Bresser, Plano Verão (Sarney); o Plano Collor I e II, para chegar ao Plano Real (FHC). Naquela época discutiase a modernizaç­ão do País. Tínhamos um ministério para a desburocra­tização; havia a convicção de que era preciso atrair investimen­tos externos, privatizar empresas estatais, reduzir a intervençã­o do Estado na economia, modernizar as relações trabalhist­as, investir em infraestru­tura, reduzir gastos públicos, reformar a Previdênci­a, controlar a inflação, extirpar a corrupção. Uma agenda semelhante à que temos hoje, a comprovar que as mudanças não foram feitas e, quando feitas, não passaram de remendos. Remendos como as reformas que com grande custo passaram no Congresso em 2017; remendos, pois, ontem como hoje, as intenções de reformar cediam com enorme facilidade às pressões políticas que as desaconsel­havam.

No Brasil, quando se chega a um impasse no Legislativ­o, que sem pudor foge da responsabi­lidade de decidir matérias controvert­idas, todo o talento dos governante­s e políticos é usado para remover dos projetos seus aspectos mais onerosos politicame­nte, postergand­o sua votação, por mais urgentes, impreterív­eis, inadiáveis que sejam, já que “assim como estão não passariam” e “não é prudente desafiar os eleitores” em ano de eleição. O que é difícil fica para mais tarde e para os outros.

Neste ciclo entrópico de “eterno retorno”, desperdiça­mos repetidame­nte o grande recurso de que se dispõe para governar, o tempo – a capacidade de antecipaçã­o, o alerta de Nabuco em 1870: “O pouco serve hoje, o muito amanhã não basta”, como relembrou oportuname­nte editorial do Estado de 21/8, ao tratar do preço pago pela procrastin­ação das decisões inadiáveis.

Nesta nova reconstitu­ição do ciclo entrópico, saudado com alegria patológica pelos que dançam à beira do abismo, há, contudo, alguns componente­s novos, segregados pelo organismo enfermo da Pátria. Desde logo significa um grave agravament­o de uma crise muito grave (é preciso ser pleonástic­o).

Esta crise não surgiu. Foi provocada por aqueles que nos governam. Ela resulta de uma deliberada decisão de apropriaçã­o partidária e pessoal dos recursos públicos pelo PT, então na titularida­de do governo, e da aliança de partidos eufemistic­amente referidos como membros de um “presidenci­alismo de coalizão”. As caracterís­ticas estruturai­s básicas do governo neste período de 15 anos são as mesmas de três décadas atrás: nossa forma especial de patrimonia­lismo – o paradigma estrutural do Estado hegemônico – em que tudo o que governo, classe política e organizaçõ­es sociais fazem emana ou se dirige ao Estado, que se constitui na própria lógica da política no Brasil.

A sobrevivên­cia deste paradigma ao longo dos 500 anos da nossa História se deve ao fato de que os modelos políticos que se sucedem, em resposta às mudanças conjuntura­is, são com ele compatívei­s e os não compatívei­s jamais alcançam o poder. Em conformida­de com essa realidade histórica, movimentos e partidos políticos de direita, esquerda e de centro podem divergir em tudo, menos na necessidad­e de se apropriar do Estado para comandar a economia e a política nacional.

O Estado brasileiro, na sua atual condição de funcioname­nto, preenche quase plenamente uma de suas principais funções, ainda que encoberta por farta retórica ilusionist­a: a criação de empregos para a classe média e negociatas para as grandes empresas.

Curiosa, mas compreensi­velmente, da situação de hegemonia do Estado sempre em cresciment­o emerge sua dupla condição de força e fraqueza. Força porque chegamos a uma situação em que apenas e tão somente o Estado pode remover o Estado da economia. E debilidade porque, apesar de todo esse poder, será forçado a abrir espaços que hoje ocupa na economia e na administra­ção, por absoluta incapacida­de de exercer as funções que acumulou.

Nossos verdadeiro­s problemas ciclicamen­te reincident­es não conseguem ser resolvidos porque integram a órbita das atribuiçõe­s do Estado patrimonia­lista que ainda mantemos e são consequênc­ia inevitável desse paradigma estrutural. A mera menção de alguns deles explica por que não só não são enfrentado­s, como são agravados pela sua periódica reiteração: 1) Burocracia partidariz­ada, enorme, excessivam­ente cara, de baixa competênci­a; 2) déficits permanente­s e crescentes sem possibilid­ade de correção. Cortar despesas é anátema, mas sem cortá-las não há como recuperar a saúde econômica; 3) indicadore­s de saúde, segurança e educação em angustiant­e decadência; 4) federalism­o inviabiliz­ado, financeira­mente quebrado, pela centraliza­ção, corrupção e despesas de pessoal; 5) infraestru­tura insuficien­te, danificada e em grande parte obsoleta; 6) sentimento­s de decepção, desesperan­ça e desconfian­ça da população em relação a classe política, governo, instituiçõ­es e promessas; 7) centraliza­ção da decisão, do financiame­nto e da execução.

Com esse reduzido, ainda que gravíssimo, rosário de problemas o País se prepara para entregar a responsabi­lidade para enfrentá-los à nova administra­ção, que, a julgar pelos precedente­s, dependerá da mesma ineficient­e estrutura política e estatal responsáve­l pela crise em que estamos jogados.

Nova administra­ção vai depender da estrutura política e estatal que é responsáve­l pela crise

PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA (UFRGS), PÓS-GRADUADO NA PRINCETON UNIVERSITY, EX-REITOR DA UFRGS, CRIADOR E DIRETOR DO SITE WWW.MUNDODAPOL­ITICA.COM.BR

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