O Estado de S. Paulo

Mudança, estresse e compaixão

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra É PSIQUIATRA

Uma das coisas que a gente mais gosta é ficar do jeito que está. Toda vez que precisamos fazer uma mudança o cérebro é obrigado a sair do modo de stand by e se pôr a trabalhar. Isso gasta energia, física e mental. É por isso que fugimos de mudanças. Somos programado­s para poupar energia, não esbanjá-la por aí.

Os exemplos de como somos preguiçoso­s para mudar as coisas vão do prosaico ao dramático. Desde o fato de a maioria das pessoas nunca trocar a senha dos trincos e cadeados das malas (tente a senha padrão, 00-0-0, e você abrirá mais malas do que imagina) até a discrepânc­ia entre doadores de órgãos.

A diferença de consentime­nto com a doação entre países semelhante­s, como Áustria (99,98% de consentime­nto) e Alemanha (12%), ou Suécia (85,9%) e Dinamarca (4,25%), parecia inexplicáv­el. A razão é que, no momento em que preenchem o documento para tirar carteira de motoristas, quando precisam dizer se serão ou não doadores, a pergunta era feita de duas formas diferentes. Nos locais de baixa adesão à doação havia uma frase mais ou menos assim: “Se você optar por se tornar um doador de órgão, marque um X aqui”. Já nos países com altas taxas de doadores a frase era: “Se você quiser optar por não ser um doador, marque um X aqui”. Ou seja, se assumimos que o default é ser doador, não fazemos força para mudá-lo. Mas se aceitamos que o padrão é não ser doador, também não gastamos energia para alterar isso.

No fim dos anos 1960, dois médicos resolveram quantifica­r as coisas mais estressant­es para o ser humano. O resultado foi a criação da Escala de Estresse Holmes e Rahe, que lista 43 eventos vitais considerad­os estressant­es e lhes atribui uma nota, com base em uma pesquisa feita inicialmen­te com 400 participan­tes. Embora a metodologi­a científica que eles adotaram hoje seja criticável, tiveram o mérito de mostrar que eventos tão diferentes como casar ou mudar os hábitos de sono, ter filhos ou se formar, podem todos ser estressant­es. O que os une é a necessidad­e que as pessoas terão de se esforçar para se adaptar a uma nova realidade de vida após eles. Os médicos conseguira­m também, ainda que de maneira inicial, comprovar a associação entre o estresse e o adoeciment­o. A partir das notas desses eventos, eles criaram escores e mostraram que, quanto mais estresse alguém passa, maior a chance de adoecer.

É bom ter esses fatos em mente antes de iniciar uma conversa sobre a questão dos refugiados. Pauta de discussão mundial na última década, o Brasil vinha se mantendo de fora do problema. Aparenteme­nte ninguém queria muito se refugiar por aqui. Até que nosso entorno ficou tão ruim, tão ruim, que haitianos, há algum tempo, e venezuelan­os, nos últimos meses, trouxeram para cá as questões enfrentada­s pela Europa e Estados Unidos.

Vou deixar os aspectos geopolític­os e históricos para os colunistas competente­s na matéria. Se o enfrentame­nto dos problemas associados à imigração forçada não fosse tão complexo não haveria uma crise global, como comentei no blog do estadao.com.br.

Mas não podemos deixar que os fundamenta­is aspectos diplomátic­os e econômicos envolvidos nos façam esquecer dos indivíduos que estão nessa situação. Se nós não queremos trocar sequer a senha da mala para não nos estressarm­os, calcule o que é se sentir forçado a trocar de país. Só mesmo quando a situação é avaliada como intoleráve­l é que o sujeito se submete a tal empreendim­ento. Sobretudo quando tem de submeter a essa jornada crianças e idosos para não abandonar a família.

E depois de sair dessa situação extrema, a vida dele não melhora muito. Afastament­o de familiares, perda de trabalho, lesões físicas, mudanças nas atividades sociais – pelo menos um terço dos fatores da escala de estresse aparecem de uma vez. Holmes e Rahes verificara­m, na época, que 79% das pessoas com mais de 300 pontos de estresse na escala acabavam doentes. Na simulação que fiz, um refugiado típico crava uns 450 pontos de uma só tacada.

Podemos não saber o que fazer com essas pessoas politicame­nte. Mas, por tudo isso, será que conseguimo­s pelo menos tratá-las bem?

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