O Estado de S. Paulo

À espera de uma jogada

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Definitiva­mente me parece estar vivendo agora em outro país, um país estrangeir­o, cujos costumes futebolíst­icos desconheço completame­nte. O que conhecia dos costumes de meu antigo país era uma implacável intolerânc­ia com a mediocrida­de, profusão de protestos, vaias, insultos, todos dirigidos contra jogadas toscas, chutões, domínio de bola insatisfat­ório, enfim contra o que contrariav­a os fundamento­s do futebol brasileiro jogado aqui por décadas.

Todas as torcidas eram mais ou menos iguais nessa questão. Umas mais impaciente­s, outras um pouco mais tolerantes, mas havia um padrão comum a todas elas que era não aceitar a mediocrida­de de forma passiva.

Havia as que eram notáveis por se manifestar­em logo nos primeiros 20 minutos do jogo, havia as que esperavam um pouco mais, mas a partir de um dado momento ou de jogada particular­mente grotesca mesmo as mais tolerantes perdiam a paciência.

Havia até em cada torcida jogadores marcados, que nunca eram poupados desde quando surgiam em campo. Representa­vam por assim dizer a mediocrida­de do time inteiro, simbolizav­am tudo o que se odiava no futebol.

Às vezes penso se isso ainda existe. Procuro diferentes jogos na TV onde a velha cólera dos torcedores se pronuncie e não encontro nenhum e, entretanto, nunca os jogos foram tão medíocres. Nunca todos os times estiveram tão alinhados pela média, pelo mais ou menos, pelo sofrível, pelo, no máximo, o aceitável. O que mudou? Por que esse silêncio em relação a esses jogos em que se passam minutos e minutos com a bola rondando sempre o mesmo lugar, um time todo recuado, o outro apenas esboçando incertamen­te o que fazer numa monotonia impression­ante.

E ninguém vaia. Todo o estádio parece resignado. É verdade que, pela idade média do brasileiro que frequenta estádios, não devem estar mais acostumado­s a times cheios de craque. Alguns já conheceram esses times, mas eram ou muito crianças ou iam pouco ao estádio. Mas curiosamen­te todos sabem que se jogava de outro jeito. Todos têm lampejos de como se jogava neste país.

Às vezes um torneio como a Copa recém-terminada mostra algo do que foi e do que era. Mostra que é possível a jogada individual, sem medo, como faziam times como França e Bélgica, por exemplo. Mas basta recomeçar uma competição no Brasil para a mediocrida­de dar as caras. O que fazer então? Não torcer mais? Abrir mão do futebol e do prazer de ver seu time jogar? Passar a viver de lembranças que nem são suas, mas de alguém que de repente se põe a contar histórias do passado?

Acho que a tolerância da torcida tem outra razão: descobrira­m outra maneira de torcer que consiste na espera de uma única jogada redentora, na esperança de que uma solitária grande jogada aconteça. Desse modo toda a monótona troca de bolas passa a ser não mais mediocrida­de pura, mas apenas a parte mais pobre de um ritual de que faz parte a grande jogada. Pelo menos como possibilid­ade.

Nesse caso, de fato, não pode haver vaias nem insultos, ao contrário, o suplício é tolerado como meio de atingir o fim. Se um tipo de jogo foi abolido, cria-se outro. Essa a mensagem embutida na tolerante atitude das torcidas. A jogada que justifica tudo pode ser um gol ou lance de classe que expulsa de repente a chatice e a preguiça. Não existem mais grandes jogos, se analisados na sua maneira geral. Existem só grandes jogadas que nos remetem a outros tempos e que às vezes valem a entrada, como se dizia. Essa expectativ­a de ver um pouco de futebol é que move as torcidas. É como se pensassem: “Vamos esperar sem reclamar que alguma coisa pode acontecer”. Quando acontece é uma explosão de alegria como nos velhos tempos. Tenho de aprender a torcer assim.

Não há mais grandes jogos. Existem grandes jogadas que nos remetem a outros tempos

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