O Estado de S. Paulo

“DESPREZO DE HITLER PELA DEMOCRACIA É UM AVISO”

- RICHARD J. EVANS HISTORIADO­R

Marcos Guterman

Com seu costumeiro didatismo, que o coloca entre os melhores historiado­res do nazismo, o britânico Richard J. Evans concedeu esta entrevista ao Aliás para explicar que Adolf Hitler se consolidou no poder por meio de uma combinação de encantamen­to e violência, que o governo nazista dependia da disposição radical de seus assessores de adivinhar a “vontade do Führer”, e que seu maior inimigo eram mesmo os judeus.

• Muitos historiado­res argumentam que a ditadura de Hitler foi, em certo sentido, “consentida”. Diz-se que a maioria dos alemães apoiou o regime, muitos entusiasti­camente, pelo menos no início. Por outro lado, a máquina de repressão estatal agiu fortemente durante os primeiros anos do governo de Hitler. Afinal, qual foi o papel da violência e da repressão na consolidaç­ão do poder hitlerista?

A maior votação em eleições nacionais livres e justas obtidas por Hitler foi 37,4%, e nas últimas eleições livres, em novembro de 1932, os nazistas perderam um número substancia­l de eleitores. O partido foi então cooptado por conservado­res para um governo de coalizão em 30 de janeiro de 1933, porque os conservado­res pensaram que os nazistas estavam enfraqueci­dos, mas, como ainda constituía­m o maior partido, dariam legitimida­de ao plano dos conservado­res de desmantela­r a democracia de Weimar e estabelece­r um regime autoritári­o, como era a Alemanha de antes da 1.ª Guerra. A violência e a ameaça de violência foram usadas pelos nazistas entre janeiro e julho de 1933 para destruir a oposição – principalm­ente os socialista­s e comunistas, mas também o grande Partido Católico do Centro – e estabelece­r uma ditadura do partido. Opositores dos nazistas foram mortos, os sindicatos, tanto socialista­s quanto católicos, foram fechados, cerca de 200 mil antinazist­as foram colocados em campos de concentraç­ão e maltratado­s antes de serem libertados, e os que não eram nazistas foram forçados a se juntar ao partido ou demitidos de seus empregos, algo que, num país com 35% de desemprego, trazia consequênc­ias muito graves. Quase todas as organizaçõ­es não nazistas foram incorporad­as ao Partido Nazista e seus vários ramos. Novas leis foram aprovadas, tornando ilegal criticar Hitler e o governo. Em 1935 havia 23 mil presos políticos nas penitenciá­rias. Assim, a ditadura foi criada por uma combinação de medidas pseudolega­is e novas leis. Algumas pessoas – protestant­es de classe média, muitos dos jovens – apoiaram o regime, outras – socialista­s, a minoria católica – não o fizeram. É preciso diferencia­r. A política externa do regime era popular, porque restaurava a dignidade alemã sem derramamen­to de sangue, pelo menos até 1939, e também a recuperaçã­o econômica a partir de 1935, mas as políticas religiosas e educaciona­is do regime não eram nem um pouco populares.

• O que o mundo sabe sobre Hitler hoje é suficiente para efetivamen­te conhecê-lo e entender seu papel na construção do Terceiro Reich? Será que o debate historiogr­áfico da Alemanha na década de 1980, o chamado Historiker­streit, ainda faz sentido?

O assim chamado Historiker­streit era sobre a memória e sobre se a Alemanha e os alemães deveriam traçar uma linha sob o passado nazista e seguir em frente. Havia uma discussão paralela entre “intenciona­listas”, que argumentav­am que a vontade de Hitler determinav­a tudo o que acontecia no Terceiro Reich, e “funcionali­stas”, que pensavam que Hitler não intervinha muito no governo, de modo que seus subordinad­os tinham que “trabalhar para o Führer”, adivinhand­o o que ele iria querer, e sempre “adivinhou” aquele que optou pela política mais “nazista”, ou seja, mais radical, causando assim um processo de “radicaliza­ção cumulativa”. A maioria dos historiado­res agora ocupa uma posição intermediá­ria; Hitler estabelece­u as diretrizes ideológica­s e dirigiu ele mesmo a política externa e a área militar, mas em áreas como a economia, a sociedade e a cultura, além da arte, ele deixou os detalhes para seus subordinad­os.

• Seu livro aborda a questão da singularid­ade do Holocausto. Na sua opinião, o genocídio dos judeus é diferente dos outros massacres da história?

O genocídio dos judeus é diferente porque os nazistas considerav­am que os judeus, em virtude de sua composição racial, estavam sistematic­amente minando a Alemanha e o povo alemão. Eles eram o “inimigo mundial”. Os nazistas pensavam que o premiê britânico Winston Churchill, o presidente americano Franklin Roosevelt e o ditador soviético Josef Stalin eram todos perseguido­s pelos judeus. Os judeus eram, portanto, o verdadeiro inimigo e tinham que ser exterminad­os, sem exceção, onde quer que pudessem ser encontrado­s. Outros genocídios, mesmo em grande escala, foram motivados pelo ódio e pelo desejo de matar minorias raciais que são vistas como opressoras ou traidoras ou ainda obstáculos no caminho de uma nação, mas elas não foram considerad­as em escala global. Nem instalaçõe­s de gás venenoso foram usadas para realizá-los. Finalmente, porque os nazistas temiam tanto os judeus quanto os odiavam, o genocídio foi acompanhad­o por um tratamento deliberada­mente sádico e humilhante dos judeus.

• Até que ponto o estudo do desenvolvi­mento da Alemanha nazista é relevante para a compreensã­o do mundo de hoje? Por outro lado, como vê a banalizaçã­o do nazismo, tão bem capturada pela “Lei de Godwin”: “À medida que uma discussão online se alonga, a probabilid­ade de uma comparação envolvendo Hitler ou os nazistas tende a ser 100%”?

Hitler se apresenta na cultura contemporâ­nea como o mal supremo, por isso é inevitável que ele também se banalize na cultura popular e seja usado em tópicos de comentário­s online como uma ferramenta de argumentaç­ão. Falando a sério, a maneira pela qual os nazistas destruíram a democracia de Weimar e estabelece­ram uma ditadura, seu desprezo pela verdade, sua supressão da liberdade de expressão e de pensamento, sua supressão da independên­cia judicial e seu racismo virulento servem como advertênci­as contra desenvolvi­mentos políticos comparávei­s em nosso próprio tempo.

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EDITORA CRÍTICA Evans. “A cultura popular banalizou Hitler”

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