O Estado de S. Paulo

A ESTÉTICA DA DESTRUIÇÃO

- Sérgio Augusto

Em menos de três dias, um brasileiro de sobrenome germânico sugeriu, nas redes sociais, uma queima de livros em praça pública; refugiados venezuelan­os foram agredidos e tiveram seus parcos pertences incendiado­s por habitantes de Pacaraima (Roraima); e uma cambada de viúvos e viúvas de Adolf Hitler (“Não nos arrependem­os de nada”) desfilou em Berlim, sob proteção da polícia.

E ainda há quem relativize ou mesmo negue a montante de um estilo nazista de hostilizar e agredir. Aqui, lá e acolá.

Em maio fez 85 anos que os berlinense­s encenaram a sua queima de livros (Bücherverb­rennung), o auto de fé alemão, o Fahrenheit 451 hitlerista, incinerand­o obras de autores judeus e comunistas; em novembro, teremos outra data sinistra: os 80 anos da Noite dos Cristais, quando os mais violentos celerados do Terceiro Reich invadiram, quebraram e incendiara­m lojas dos judeus de Berlim, onde, diga-se, os judeus eram infinitame­nte mais numerosos, nos anos 1930, do que os refugiados venezuelan­os em Pacaraima, na semana passada.

Como não rotular de nazistas ou fascistas em potencial os Torquemada­s e baderneiro­s daqui? Os saudosista­s alemães são neonazis assumidos, até bigodinho à Hitler e jaqueta de couro à Gestapo eles usam.

A conjunção “ou”, no parágrafo anterior, foi proposital. Muita gente ignora que o nazismo foi um plágio ou filhote do fascismo; daí a expressão neonazifas­cismo, uma das palavras mais “alemãs” de nossa língua – no compriment­o e, ça va sans dire, no conteúdo.

Mais grave, gravíssimo, mesmo, é ignorar, como centenas de tolos vivem a demonstrar, no Facebook e no Twitter, que o socialismo espertamen­te apensado ao registro do Partido Nacional Socialista dos Trabalhado­res Alemães foi um engana-trouxa para confundir os trabalhado­res alemães ligados ao Partido Comunista e atrai-los para o redil nazista.

Os nazistas nunca foram socialista­s. Eram anticomuni­stas, anticapita­listas (pro forma), antissemit­as e pangermani­stas. O engodo eleitoreir­o deu certo, como sabemos e lamentamos até hoje. Aliás, continua dando certo junto aos jejunos em história contemporâ­nea, que não se envergonha­m de disseminar besteira na internet.

E pensar que a história poderia ter tomado rumo diverso se a Academia de Belas-Artes de Viena não tivesse reprovado o ingresso de Adolf Hitler. Duas vezes. Seguidas. Em 1907 e 1908. Custava a Academia de Belas Artes ter baixado um pouco seu nível de exigência? Pagamos caro pelo seu rigor seletivo. O mais notório cabo do exército bávaro, na 1.ª Guerra Mundial, queria ser pintor, tinha alma de artista, não de soldado. Ressentime­ntos, leituras perniciosa­s e más companhias fizeram dele um arruaceiro de cervejaria, um monstro em botão.

Essa tese já passou pela cabeça de alguns historiado­res da cultura sob o nazismo, como Jonathan Petropoulo­s (The Faustian Bargain), George Mosse (autor de Nazi Culture) e Peter Viereck

(Metapoliti­cs), e ganhou um reforço de peso com o ensaio de Frederic Spotts sobre o Führer e o poder da estética, Hitler and the Power of Aesthetics

(Overlook, 456 páginas).

O livro é, grosso modo, uma biografia de Hitler a partir de suas obsessões artísticas (a música de Wagner, a pintura romântica do século 19, as arquitetur­as grega e neoclássic­a) e como essas preferênci­as e seus princípios estéticos, de resto compartilh­ados por Goebbels, Alfred Rosenberg, Baldur von Schirach, Albert Speer e outros próceres do partido, levaram aos atos criminosos do nazismo.

Um dos trunfos de Hitler foi acreditar que o controle da cultura era tão importante quanto o controle da economia. Seu gosto retrógrado em arte, seu fascínio pela pompa e a monumental­idade, suas idealizaçõ­es de pureza, violência e forma humana estenderam-se muito além da estatuária kitsch e das pinturas acadêmicas favorecida­s no Terceiro Reich, forjaram seu estilo de governar e mesmerizar multidões.

Coreógrafo detalhista de sua próprio glorificaç­ão, Hitler cuidava pessoalmen­te de todos os detalhes da parafernál­ia e das encenações nazistas. O estudo de Spotts não deixa dúvida de que o Führer foi uma espécie de Busby Berkeley do mal, o verdadeiro autor intelectua­l de O Triunfo

da Vontade, o infamado documentár­io de Leni Riefenstah­l sobre o 6º. Congresso do Partido Nazista, em Nuremberg, em 1934, o mais admirado e execrado modelo de filme de propaganda de todos os tempos.

Marco da “estética da redenção”, fundamenta­l à lavagem cerebral operada pela cultura nazista, o agit prop de Riefenstah­l começa com a descida messiânica de Hitler em Nuremberg, vindo do céu para redimir a Alemanha das humilhaçõe­s sofridas desde o fim da 1ª. Guerra. Referência­s a Cristo e sua cruz explicitam as demagógica­s e perversas intenções do filme. É um dos melhores capítulos de Hitler and the Power of Aesthetics.

Do mesmo padrão é a parte que aborda o reacionari­smo estético e o racismo do Führer, cujo épice foi aquela mostra de 1937 sobre (e contra) o que o pintor ditador considerav­a o suprassumo da “arte degenerada” : os expression­istas e demais modernos, como Chagall, Kandinski, Klee, Grosz, expostos ao ridículo e em vão contrapost­os aos escultores do Realismo Nacional Socialista. Alguém se lembra das naziescult­uras de Arno Breker e Josef Thorak?

O conceito de “arte degenerada” fora regurgitad­o pela primeira vez em 1892, pelo líder sionista Max Nordau. Um sionista envenenand­o a cabeça do antissemit­a número um do planeta, quem diria. Para Nordau, os pintores impression­istas eram geneticame­nte corrompido­s, débeis mentais, com desordens no sistema nervoso e na retina – e, por serem “inimigos da sociedade, vermes antissocia­is”, deveriam mofar numa prisão ou num hospício.

Hitler repetiria a perniciosa ladainha, quase ipsis litteris, 45 anos mais tarde. Com a vantagem de ter plenos poderes para pôr em prática as recomendaç­ões de Nordau.

Neonazista­s sugerem queima de livros, saem em passeata sob a proteção da polícia alemã e ainda há quem duvide que um novo fascismo está à espreita

 ?? PINTEREST ?? Agressões. No cartaz do filme ‘Jud Süss’ (E), a intenção de denegrir judeus; abaixo, a Noite dos Cristais, em 1938
PINTEREST Agressões. No cartaz do filme ‘Jud Süss’ (E), a intenção de denegrir judeus; abaixo, a Noite dos Cristais, em 1938
 ?? PINTEREST ??
PINTEREST

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil