O Estado de S. Paulo

A HIPNOSE COLETIVA ALEMÃ EM ‘CALIGARI’

- Donny Correia DONNY CORREIA É MESTRE E DOUTOR EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP.

Indicado ao prêmio HQ MIX na categoria Melhor Adaptação para Quadrinhos, Caligari! (Editora Veneta), do artista gráfico Alexandre Teles, realizado a partir do filme clássico expression­ista O Gabinete do Dr. Caligari (1920), rejeita fórmulas próprias de uma quadriniza­ção, quer dizer, não recria movimentos a partir da contiguida­de dos quadrinhos numa página, e nem tenta colocar diálogos nas bocas dos personagen­s, algo comum em edições do gênero. Ao contrário, Caligari! apresenta ao leitor uma espécie de livro de arte, no qual a decupagem proposta configura um storyboard às avessas, como se pensado a priori, mas executado por último.

Na esteira dos diálogos possíveis entre linguagens da arte, é possível enxergar a obra de Teles até mesmo como um livro objeto, se levarmos em conta uma das funções que cumpre ao discutir as imbricaçõe­s que envolvem suportes distintos de produção artística. Neste caso, o cinema, a literatura, as artes visuais etc. Caligari! evidencia, ainda, as possíveis narrativas que criam a polifonia das culturas pop e geek.

O autor explica em seu posfácio o complexo processo da monotipia, técnica de produção de gravuras a que se dedicou por quatro anos para obter as tantas reproduçõe­s das cenas do filme. São sequências de imagens que citam e emulam gravuras expression­istas como as de Emil Nolde (1867-1956) ou de Käthe Kollwitz (18671945), mas com uma marca estética muito pessoal. Em sua pesquisa e execução, tentou reproduzir até mesmo as imperfeiçõ­es do filme na película já muito castigada pelo tempo.

Por trás dessa “mimese autoral”, numa camada narrativa mais abstrata, própria da obra de arte, há uma espécie de Ekphrasis do elo de ligação entre determinad­os momentos da História. Mais precisamen­te das “forças ocultas” recorrente­s em torno de determinad­as culturas. E isto fica evidente quando nos damos conta de que Teles se valeu do argumento original escrito pelos jovens heróis da 1ª. Guerra Mundial, Carl Mayer e Hans Janowitz, não da montagem final proposta pelo produtor do filme, Eric Pommer.

Explico: ambos conceberam a trama sombria passada no vilarejo de Holstenwal­l, Alemanha, quando um misterioso hipnólogo, Dr. Caligari, surge com seu sonâmbulo Cesare, um fiel “soldado” que passa a cometer crimes por ordem de seu mestre. Um jovem curioso, Francis, que perdera o amigo num dos crimes cometidos por Cesare, resolve investigar o que vem causando ruído na paz de seu vilarejo. Os autores do argumento pretendiam que a história se encerrasse quando o espectador descobriss­e que o velho hipnólogo não é o verdadeiro Dr. Caligari, mas um louco obcecado por certo Caligari, que perambulav­a pela Itália com um sonâmbulo a tiracolo por volta do século 11. No filme, uma vez desmascara­do, o velho louco é encerrado num hospício. Mayer e Janowitz pretendiam enfatizar por metáfora a desgraça coletiva deflagrada pela obediência cega a uma forma de autoridade com contornos quase sobrenatur­ais, num país devastado pela guerra e marcado por vários levantes que culminaria­m na ascensão do nazismo.

Por sugestão de Fritz Lang – cogitado para Caligari, mas que declinou da função por conta de outro projeto –, Pommer, convencido, embalou a ideia original numa narrativa moldura. Assim, ao final do filme, descobrimo­s que o louco obcecado por Caligari é Francis, na verdade. Ele é quem acaba trancafiad­o no manicômio e examinado pelo hipnólogo, agora revelado diretor da instituiçã­o para lunáticos. O velho afirma, assim que descobre qual mal assombra o perturbado Francis, que agora pode curá-lo. A ideia original se perdeu completame­nte. Ao invés da crítica, agora temos o elogio de uma força coerciva predestina­da a regrar e condiciona­r o inconscien­te coletivo representa­do pelo jovem.

Por outro lado, ao nos voltarmos para a deteriorad­a condição das relações de nossa pós-utopia, percebemos que não há muito de distância entre o obscuro sarcófago do sonâmbulo Cesare e nossa histeria cotidiana travestida de causas. Talvez, nossa natureza seja, ainda hoje, expression­ista: sisuda, fria e descrente. Afinal, se vistos de perto, Weimar, o Crash, o Nazismo, a Guerra Fria, Bush, o Terrorismo, Trump ou, claro, nossa novela nacional, são marcos artificiai­s que nos servem de mero didatismo escolar. A massa multiforme e homogênea da História é uma camada a mais na profundida­de da leitura no Caligari!.

Se pensarmos na sofisticaç­ão que atingiu a arte das HQ’s, o hibridismo estético dessa edição propõe um novo gênero dentro do gênero. Como dito, indicado à categoria de melhor adaptação, Caligari! pode ser melhor descrito como uma uma releitura sincrônica possível por meio da arte. Está, assim, além de uma dupla tradução intersemió­tica, e se situa na fronteira sutil entre o visual, o fílmico, o narrativo e o filosófico

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‘CALIGARI!’/ALEXANDRE TELES Alegoria. À esquerda, adaptação em HQ; à dir., cena do clássico ‘O Gabinete do Dr. Caligari’
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DECLA FILM-GESELLSCHA­FT

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