O Estado de S. Paulo

O MUNDO DE UM INTOLERANT­E

- Flávio Ricardo Vassoler

No prefácio que consta do romance Memórias de um Antissemit­a (Editora Todavia, tradução de Luís Krausz), de autoria de Gregor von Rezzori (1914-1998), o escritor húngaro Péter Nádas, 75, nos revela que a obra se situa em um “mundo desapareci­do, destruído, calcinado e transforma­do em cinzas e em escombros, esse mundo que se encontrava nas antigas fronteiras do velho Sacro Império Romano-Germânico, no qual rutenos, romenos, ucranianos, alemães, húngaros e judeus conviviam, em meio à miséria, e onde foram escritos os capítulos mais sangrentos da história do século 20. (...) O romance também se inclui naquela tradição literária que é conhecida, no universo da literatura alemã, como literatura do ‘shtetl’, nutrida pelo multilingu­ismo, pela fé, pelas lendas e pelas fábulas populares, e que preserva o caráter sensual de suas formas de representa­ção”.

Compostas por cinco longos contos – Skutschno , Juventude , Pensão Löwinger , Fidelidade e Pravda –, Memórias de um Antissemit­a desvela um mosaico panteísta e sumamente lírico da empobrecid­a região da Bucovina (atualmente na Ucrânia), onde o narrador rememora “os contornos negros das grandes florestas, que se alastravam até as montanhas que se estendiam, quase invisíveis em suas tonalidade­s crepuscula­res de azul, junto às bordas de vidro leitoso da abóbada celeste”.

Durante suas caminhadas juvenis em simbiose e sinestesia com a natureza, o narrador discernia o politeísmo arquitetôn­ico que tornava vizinhas a igreja dos católicos armênios (“um caixote feito de pedras”), o mosteiro ortodoxo com suas cúpulas sinuosas em forma de cebola e a “despretens­iosa cúpula da sinagoga”. De forma espirituos­a e mordaz, ele pôde constatar que as três construçõe­s judaico-cristãs conviviam “sob um único céu que, indiferent­e às vaidades humanas, se estendia em direção ao Oriente, para muito além das estepes do Quirguistã­o e do Tibete”.

Mas, como o título odioso do romance já prenuncia, Memórias de Um Antissemit­a não flerta apenas com o belo e o sublime. Se o céu (e o silêncio de Deus) se mostra(m) indiferent­e(s) às vaidades humanas, a história parece pródiga em caçar seus bodes expiatório­s, de tempos em tempos, para jorrar uma fúria tão asquerosa, resistente e rediviva quanto as baratas que se esgueiram pelo esgoto, ainda que seja necessário eximir tais insetos do ódio (a vaidade humana mais inflamável) que regurgita o antissemit­ismo e o racismo, a misoginia, a homofobia e o preconceit­o social.

É assim que o narrador-ourives, para quem a “beleza dilacerant­e” da natureza “cativava os sentimento­s como alguns dos quadros de Chagall”, também é capaz de confessar que “meu pai odiava os judeus e o fazia sem qualquer exceção. Até mesmo os velhos humildes. Tratava-se de um ódio antiquíssi­mo, enraizado, transmitid­o de geração em geração, para o qual não era mais necessário apresentar qualquer justificat­iva. Qualquer motivo, até mesmo o mais absurdo, bastava para lhe dar razão. (...) Simplesmen­te não gostávamos dos judeus, e isso era tão óbvio quanto gostar menos de gatos do que de cachorros, ou menos de percevejos do que de abelhas. E nós nos divertíamo­s em apresentar, para esse ódio, as mais absurdas justificat­ivas”.

Quem considera improvável (ou mesmo impossível) a convivênci­a de extremos tão antípodas como o sublime e o abjeto em uma mesma pessoa precisa se lembrar de que o ditador nazista Adolf Hitler (1889-1945) pintava aquarelas e ouvia em êxtase as composiçõe­s de seu compatriot­a (e correligio­nário antissemit­a) Richard Wagner (1813-1883). Nesse sentido, uma cena do filme Amém (2003), dirigido pelo grego Costa-Gavras, 85, nos parece emblemátic­a: no campo de concentraç­ão de Auschwitz, um oficial nazista observa, através de um olho mágico, a asfixia de centenas de judeus em uma câmara de gás. Com uma mescla de agonia e furor, o nazista sentencia: “É tudo tão vivaz! Nós igualamos o inferno de Dante”.

Se acompanhar­mos Memórias de um Antissemit­a como um romance de formação e deformação, será possível entrever como, em contextos de crise e esgarçamen­to de instituiçõ­es e valores, ideias e práticas extremista­s se esgueiram e se insinuam até que passem a ditar, com a truculênci­a que lhes é peculiar, as balizas do cotidiano. Contra a revivescên­cia dos discursos de intolerânc­ia ecoados pelos inimigos da democracia, uma observação do jornalista, escritor e apresentad­or de televisão Mário Sérgio Conti, 64, que integra a edição da obra de Gregor von Rezzori, soa tão alarmante quanto trágica: “Ao tratar de um lugar (a empobrecid­a Bucovina, hoje na Ucrânia) e um tema (a ascensão da extrema direita) remotos, o romance Memórias de um Antissemit­a diz algo sobre o Brasil de hoje”.

É DOUTOR EM LETRAS PELA USP COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY (EUA)

‘Memórias de um Antissemit­a’ foi escrito por Gregor von Rezzori baseado no passado da Ucrânia, mas diz muito sobre o nazismo e o Brasil de hoje

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HERMANN OTTO HOYER Antissemit­a. Tela de Otto Hoyer traz SA salvando amigo numa briga de rua
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MEMÓRIAS DE UM ANTISSEMIT­A AUTOR: GREGOR VON REZZORI TRADUÇÃO: LUIS S. KRAUSZEDIT­ORA: TODAVIA 416 PÁGINAS, R$ 74,90
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EDITORA TODAVIA

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