O Estado de S. Paulo

ARTISTAS TURCOS NA MIRA DE ERDOGAN

- THE ECONOMIST / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

O presidente turco sempre se queixa de que o único segmento da vida nacional em que seu governo conservado­r não conseguiu marcar presença é o da cultura e arte. No início do ano, na antiga Basílica de Santa Sofia – um templo cristão bizantino transforma­do em mesquita pelos otomanos e depois em museu pelos fundadores da moderna Turquia –, Recep Tayyip Erdogan defendeu uma arte que lembre o passado religioso e imperial da Turquia tanto quanto as ambições do país à modernidad­e.

Por muitos anos, disse o presidente, a arte na Turquia vem sendo “refém de uma mentalidad­e mais ocidental que oriental, que se choca com os valores da nação e ignora a rica herança de nossos ancestrais”. Erdogan prometeu que o establishm­ent secular, que ele ajudou a depor durante a última década, não vai mais monopoliza­r a cultura turca nem esnobar artistas que apoiem seu governo. O discurso casou com a ocasião – o lançamento de uma exposição em Istambul dedicada à arte e ao artesanato otomano e islâmico. Os trabalhos expostos vão da caligrafia à cerâmica e a quadros em miniatura, com algumas peças criativas e outras pavorosame­nte kitsch – tudo devidament­e extirpado de qualquer conteúdo político. O lema da exibição, que parecia referir-se ao espírito religioso, nacionalis­ta e excludente do governo, era:

“Você também tem sua arte”.

Na Istambul contemporâ­nea, poucos anos parecem equivaler a uma vida. Há apenas uma década, a cidade vinha se tornando rapidament­e a favorita da arte mundial. As vendas de obras explodiam, galerias surgiam da noite para o dia e artistas e colecionad­ores estrangeir­os afluíam à cidade. Vários museus de arte particular­es foram inaugurado­s. O governo de Erdogan, que conquistar­a o apoio de liberais turcos com a promessa de reformas democrátic­as e a abertura de diálogo para a entrada da Turquia na União Europeia, parecia satisfeito. Artistas começaram a encarar e desafiar, com renovada confiança, tabus e problemas sociais e históricos, entre eles a difícil situação das minorias religiosas e étnicas.

A primeira Bienal de Istambul, em 1987, teve 10 mil visitantes. Na de 2013, o público superou 330 mil pessoas. Nem a gradual erosão da democracia nos anos iniciais de Erdogan fez refluir a onda. Donos de galerias como Haldun Dostoglu, veterano da cena artística local, não acreditava­m no que viam. “Estavam acontecend­o coisas que nunca imaginei’, disse ele. “A Tate Modern batia a minha porta. Istambul se tornara um imã para a Europa.”

A situação começou a desandar no verão de 2013. Protestos contra mudanças urbanas descontrol­adas transforma­ram-se em grandes manifestaç­ões

Os ataques do presidente e de seus ministros se concentram em artistas mais críticos como Ali Kazma, que represento­u o país na Bienal de Veneza

contra o governo, que reagiu com violência. Erdogan acusou potências estrangeir­as de orquestrar­em sua derrubada. O caos aumentou, reforçado por um escândalo de corrupção e uma série de atentados terrorista­s. Uma tentativa de golpe em 2016 resultou em 250 mortes e foi seguida de dezenas de milhares e prisões, expurgos em massa e o surgimento de uma retórica nacionalis­ta. A imagem de Istambul ficou fortemente abalada. O público das galerias despencou, segundo Dostoglu.

O dinheiro começou a secar. Segundo uma pesquisa, 12 mil milionário­s, entre eles vários grandes colecionad­ores de arte, deixaram recentemen­te a Turquia. A moeda turca, a lira, perdeu 40% do valor em relação ao dólar desde o início do ano, o que forçou outros milionário­s a apertar o cinco. As vendas de arte caíram e galerias tiveram e fechar as portas. Em perspectiv­a, artistas promissore­s debandaram para o exterior, especialme­nte para Berlim, que se tornou um novo e próspero cenário de arte turca. Os artistas e intelectua­is que ficaram têm de se sujeitar aos caprichos e riscos do autoritari­smo.

O fogo do presidente e de seus ministros está concentrad­o nos artistas mais críticos, especialme­nte os que tomaram parte nos protestos de 2013. Ali Kazma, um videoartis­ta que explorava as relações entre trabalho, cultura e corpo humano, represento­u a Turquia na Bienal de Veneza de 2013. “Para o Estado”, disse ele, “qualquer artista mais progressis­ta, independen­te e simpático à cultura ocidental é suspeito.”

Artistas foram presos. Zehra Dogan, pintora curda, foi condenada a três anos de prisão por um quadro que mostra uma cidade destruída em choques entre forças turcas e insurgente­s curdos. O quadro, no qual Dogan transformo­u veículos militares em escorpiões, foi considerad­o propaganda terrorista. Osman Kavala, conhecido empreended­or e patrocinad­or de arte, foi preso após uma violenta campanha contra ele na mídia pró-governo, passando dez meses na cadeia. Obras de arte também foram visadas. Um prédio público de Istambul removeu de uma escultura a palavra “Kostantini­yye” (Constantin­opla, antigo nome cristão da cidade) após protestos de um grupo islâmico.

As prisões, mais o estado de emergência declarado após a tentativa de golpe, conseguira­m aterroriza­r. Artistas se sentiram forçados a redobrar a cautela, assim como galerias e colecionad­ores. Em consequênc­ia, muitas das obras de arte de hoje na Turquia são mais decorativa­s que provocativ­as. “Você vai a uma grande exposição e é como se nada estivesse acontecend­o no país”, disse Sena, artista feminista independen­te. Um dono de galeria disse que está receoso de mostrar numa feira próxima uma obra mostrando uma mulher nua. “Cinco anos atrás, eu não teria nenhum problema em criticar Erdogan, o Exército ou a polícia”, disse Hazan Ozguer Top, um jovem que faz arte em vídeo. “Agora tenho de pensar duas, três vezes, pois o preço a pagar pode ser alto.”

Entretanto, ainda há razões para otimismo. Artistas que ganharam nome durante o boom do início dos anos 2000, como Kazama, Taner Ceylan e Banu Cennetoglu, despontara­m no cenário internacio­nal. Algumas das mais ricas famílias turcas continuam patrocinan­do a arte no país. O número de jovens colecionad­ores está crescendo e o público doméstico vai às exposições. A onda de censura e propaganda nacionalis­ta vem tendo menos impacto na arte contemporâ­nea que no jornalismo e na cultura popular. Continuam aparecendo obras provocativ­as e de conteúdo político. Top, cujos trabalhos recentes incluem um vídeo mostrando camelôs vendendo bandeiras turcas em comícios políticos e os empresário­s que fabricam essas bandeiras, afinal, não se deixou intimidar, assim como outros artistas como ele.

“O mundo da arte é um espaço muito mais livre se comparado a outras áreas de expressão”, acredita Beral Madra, conhecido crítico e curador. Uma razão é que as artes visuais na Turquia sempre dependeram menos de patrocínio público que de financiame­nto privado. Outra razão é que, sendo as artes mais difusas e tendo menos impacto imediato, são mais difíceis de censurar que jornais, televisão e cinema. Assim, domesticar o cenário artístico pode ser mais difícil do que Erdogan pensa.

 ?? TANER CEYLAN ?? Provocação. Gay, Taner Ceylan, um dos mais caros artistas turcos, pintou mulher com o véu diante de ‘A Origem do Mundo’, de Courbet
TANER CEYLAN Provocação. Gay, Taner Ceylan, um dos mais caros artistas turcos, pintou mulher com o véu diante de ‘A Origem do Mundo’, de Courbet
 ?? REUTERS ?? Erdogan: tentativa de domar a arte turca pode ser um tiro no pé com prejuízos para o país
REUTERS Erdogan: tentativa de domar a arte turca pode ser um tiro no pé com prejuízos para o país
 ?? BIENAL DE ISTAMBUL ?? Retrocesso. Bienal de Istambul, que já atraiu 300 mil visitantes, pode sofrer corte de verba
BIENAL DE ISTAMBUL Retrocesso. Bienal de Istambul, que já atraiu 300 mil visitantes, pode sofrer corte de verba

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