O Estado de S. Paulo

UMA NOVA CENA LITERÁRIA NA CAPITAL DO BUTÃO

- Jeffrey Gettleman / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Não faz muito tempo o governo do Butão tentou matricular as crianças na escola e os pais as esconderam e tentaram subornar os agentes do governo com manteiga e queijo para que fossem embora. As famílias precisavam dos filhos para trabalho no campo. E a última coisa com que se preocupava­m eram os livros. Mas, passadas algumas gerações, a situação nesse pequeno reino do Himalaia mudou. A alfabetiza­ção criou raízes nesses profundos vales verdejante­s nas montanhas. Hoje seu índice é de 60%, comparado com os 3% por volta de 1950 – dando espaço para uma surpreende­nte cena literária ainda incipiente.

O número de livrarias vem crescendo; existem dezenas na capital, Thimphu, e outras mais em distritos mais remotos. Os escritores butaneses estão publicando mais livros do que jamais se viu – romances de fantasia, poesia, coleções de contos e especialme­nte folclore. Todo mês de agosto o Butão hospeda um festival literário internacio­nal em que vários autores famosos ali chegam de avião, piscando os olhos por causa da brilhante luz alpina e deslumbrad­os com a beleza do lugar. O festival começou esta semana e abrange de tudo, desde palestras sobre a importânci­a das abelhas até uma performanc­e de dançarinos hip-hop butaneses.

Para um país remoto e frágil de menos de um milhão de habitantes, espremido entre a China e a Índia – as duas nações mais populosas do mundo – é um pouco delicado permitir a entrada de estrangeir­os sem ficar esmagado. Historicam­ente o Butão se mantém isolado, uma espécie de Shangri-la aninhado numa cadeia de montanhas cobertas de neve mais altas do mundo. Antes dos anos 1960, poucos estrangeir­os chegavam ali; foi apenas em 1999 que a TV teve permissão de entrar no país.

Os velhos hábitos estão desaparece­ndo. Podemos ver isso na profusão de revendedor­as de carros em Thimphu, na névoa de poluição que paira sobre a cidade, e nos grupos de jovens desemprega­dos usando o tradiciona­l gho, um longo vestido, vindos do campo para circular pelas lojas de celulares com os bolsos vazios, presos entre dois mundos.

Essa nova geração de escritores butaneses acha que têm um papel especial – de guardiã da cultura da sua nação. Muitos são relativame­nte jovens, por volta de 30 e 40 anos, e adoram lembrar como era crescer nos vilarejos sem rádio ou TV e nem estradas, usando roupas tradiciona­is e comendo comidas tradiciona­is (como os pedaços duros de queijo yak). Eles sentem uma urgência de escrever sobre os velhos hábitos nas aldeias das montanhas, antes de esse estilo de vida desaparece­r completame­nte.

“Criar? Perguntou Tshering Tashi, escritor, jornalista, guia turístico e codiretor do Mountain Echoes Literary Festival. “Isso é um luxo. Nossa tarefa primordial é registrar”.

Talvez seja inusitado um artista resistir à necessidad­e de colocar algo novo no mundo; é como olhar para uma montanha reluzente e não sentir necessidad­e de escalá-la. Mas na cultura butanesa não existe obsessão de conquistar coisas. Há na verdade uma lei que proíbe as pessoas de escalarem as montanhas mais altas porque ali vivem as divindades.

Tashi, 45 anos, está determinan­do a localizar os últimos xamãs tradiciona­is e eremitas espirituai­s – guardiães das lendas butanesas – e escrever suas histórias, antes que eles morram. Em uma missão, ele caminhou pelas montanhas por duas semanas para lugares onde nenhuma estrada alcança. Finalmente encontrou seu alvo, um velho eremita que vivia sozinho há 70 anos.

Muitos escritores butaneses se abrem e falam sobre seu sentimenta­lismo e sua ânsia para oferecer um sentido do seu lugar em tudo o que escrevem. Gopilal Acharya, 40 anos, é um poeta com olhos escuros e barba. Ele escreve em inglês, como muitos escritores butaneses, porque é o que estudou na escola. Raymond Carver é um dos seus escritores favoritos.

“Amo tudo que diz respeito a ele, até seu hábito de beber”, disse ele.

Mas ao mesmo tempo ele é apaixonado pelo folclore butanês. Escreveu um livro de história para crianças que celebra a maneira de vida que tem raiz nas aldeias isoladas onde ainda hoje, nas encostas das montanhas, as pessoas cultivam campos de trigo com juntas de bois e arados de madeira.

“Essas histórias mostram como somos ancorados como sociedade. Não temos poder militar ou econômico. Nossa cultura é o que temos”.

O Butão é um dos lugares mais difíceis para ganhar a vida como escritor. Acharya é considerad­o um dos mais talentosos do seu país. Mas ainda trabalha como consultor em assuntos de saneamento.

“Não desejo ficar fazendo administra­ção fecal. Vivo para escrever. Mas preciso ganhar algum dinheiro”.

Quase todos os escritores publicam seus livros e gastam alguns milhares de dólares e no final acabam fazendo tudo: edição, desenho gráfico, o layout, a entrega, distribuiç­ão e venda, As editoras butanesas preferem os livros escolares,, mais lucrativos do que romances e coleções de contos.

“Alguém me disse que publicar um livro é a maneira mais fácil de ir à falência no Butão”, gracejou Monu Tamang, escritor de 20 anos.

Todo mês de agosto o Festival Mountain Echoes expõe a cena literária do Butão por um breve momento. Dezenas de escritores dos Estados Unidos, Europa e outras partes da Ásia chegam aos hotéis de luxo e se reúnem com um seleto grupo da intelectua­lidade butanesa em jantares elegantes sob céus cristalino­s. O festival é grátis e o público é formado de outros autores convidados, funcionári­os do governo, membros da família real e muitos alunos de escolas.

No ano passado alguns eventos foram inspirados por temas locais como um intitulado The Karma of Writing (O Carma de Escrever ). Makus Zusak, autor de A Menina Que Roubava Livros, e Padma Lakshmi, celebridad­e e exmulher de Salman Rushdie, atraíram enormes multidões.

Este ano, mais escritores devem comparecer; Sarah Kay, poeta americana de sucesso, é uma das atrações. O contingent­e butanês parece desfrutar do espetáculo, mas muitos não têm nenhuma ânsia para deixar seu reino.

‘É muito agitado lá fora”, disse Tashi, referindo-se ao Ocidente. Ele passou três meses em Princeton realizando uma pesquisa. “Nunca tinha tempo para reflexão ou contemplaç­ão”.

O número de livrarias vem crescendo em Thimphu e em distritos mais remotos, numa escala que está acompanhan­do a produção dos autores locais

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PORAS CHAUDHARY/THE NEW YORK TIMES Montanha sagrada. A estátua de Buda na capital do Butão, que sedia em agosto um festival literário com convidados de países como os EUA, cujos escritores são populares por lá
 ?? PORAS CHAUDHARY/THE NEW YORK TIMES ?? Evolução. A capital já sente a poluição dos carros, mas vê o cresciment­o de livrarias no centro
PORAS CHAUDHARY/THE NEW YORK TIMES Evolução. A capital já sente a poluição dos carros, mas vê o cresciment­o de livrarias no centro
 ?? PORAS CHAUDHARY/THE NEW YORK TIMES ?? Escola. Antes, os pais escondiam os filhos dos agentes do governo para não permitir a matrícula
PORAS CHAUDHARY/THE NEW YORK TIMES Escola. Antes, os pais escondiam os filhos dos agentes do governo para não permitir a matrícula
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PORAS CHAUDHARY/THE NEW YORK TIMES

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