O Estado de S. Paulo

Um presidente acima da lei

- THOMAS L. FRIEDMAN TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO / É COLUNISTA

Donald Trump parou sua comitiva em Manhattan, saltou de sua limusine e disparou contra um homem na Quinta Avenida que estava gritando insultos anti-Trump. Os tiros foram gravados pela equipe de imprensa da Casa Branca, por dezenas de espectador­es com celulares e pelas câmeras de segurança. Quando questionad­o sobre sua reação, o presidente da Câmara, Paul Ryan, disse: “Vamos precisar de mais informaçõe­s do que as disponívei­s neste momento”.

O líder republican­o no Senado, Mitch McConnell, disse que “não comentaria o caso”. O presidente da Comissão de Inteligênc­ia na Câmara, Devin Nunes, garantiu que tinha informaçõe­s de que o homem no qual Trump atirou “trabalhava para a Fundação Clinton e seria parente da ex-assessora de Hillary, Huma Abedin”.

A Fox News não cobriu os disparos em seu horário nobre, que se concentrou na morte de uma mulher de Iowa por um imigrante ilegal. A única referência da Fox ao fato de o presidente ter atirado foi que “um homem da cidade de Nova York morreu hoje quando correu em direção a uma bala disparada pelo presidente”.

A porta-voz da Casa Branca, Sarah Huckabee Sanders, disse a repórteres que estava olhando para o outro lado quando o tiro foi disparado, portanto, não tinha nada a comentar. “Eu não tive a oportunida­de de discutir isso com o presidente. Voltarei a entrar em contato com você se tiver algo. Mas o presidente declarou muitas vezes que ele poderia atirar em alguém na Quinta Avenida e sair impune. Portanto, ele está apenas mantendo uma promessa de campanha. Ele não fez nada errado. Não há acusações contra ele.”

Horas depois, o presidente tuitou: “Na verdade, algumas pessoas estão dizendo que um homem que se parecia muito com Barack Obama deu o tiro. Eu não estou dizendo isso – mas algumas pessoas estão”. O dia terminou com a secretária de Educação, Betsy DeVos, declarando que o fato de o presidente disparar contra alguém na Quinta Avenida em plena luz do dia “só prova novamente que precisamos dar armas a todos nossos professore­s”.

Meu maior desafio ao escrever todo o texto acima? Preocupar-me com a ideia de que os leitores não percebesse­m que tudo foi inventado. Isso porque todos nós sabemos agora que Trump estava certo quando disse que poderia atirar em alguém na Quinta Avenida e ainda assim seus adeptos ficariam ao lado dele.

Nós já o vimos se safar demais até agora. Nenhuma restrição a Trump jamais virá de seu partido ou de sua base – especialme­nte após a morte de John McCain. Então, prenda sua respiração. Trump só será contido se o seu partido perder a Câmara ou o Senado.

E, para os republican­os moderados, mulheres brancas e independen­tes que votaram em Trump e estão pensando em votar contra candidatos republican­os em novembro, para estabelece­r alguns limites ao presidente, deixe-me descrever o que está em jogo de outra maneira.

Os EUA venceram a Guerra Fria. Os valores e o sistema econômico eram superiores aos da Rússia. Mas o que está em jogo agora é saber quem vai vencer o pós-Guerra Fria. Sim, a questão está de volta. Porque o que estamos vendo no comportame­nto de Trump e de seus bajuladore­s é o início da “russificaç­ão” da política americana. Vladimir Putin ainda pode vencer.

No auge da Guerra Fria, observou Marina Gorbis, diretora do Instituto para o Futuro e imigrante da União Soviética, os americanos levaram a sério a noção de que devíamos servir “de contraste” aos russos. Como os soviéticos afirmavam ter construído o paraíso dos trabalhado­res, era importante que tivéssemos fortes sindicatos, uma classe média forte, menos desigualda­de e uma rede de segurança social adequada. Os soviéticos não tinham o estado de direito. Então, tínhamos de tê-lo mais do que nunca.

“Vim da Rússia em 1975”, disse Gorbis. “E foi notável para mim que nessa sociedade havia leis, normas e princípios, e as pessoas respeitava­m as leis. A ideia de que as pessoas realmente pagavam seus impostos era de certa forma extraordin­ária para mim.” Na Rússia em que ela cresceu, não havia isso. “Se houvesse uma lei, sempre havia um jeito de subornar e contorná-la.”

Mas, com a Guerra Fria muito atrás em nosso espelho retrovisor, Trump insiste em aproximar os EUA da Rússia, apesar do fato de as agências de inteligênc­ia e as maiores empresas de internet já terem confirmado que a Rússia interferiu nas eleições de 2016.

Trump ainda rejeita nos mostrar sua declaração de imposto de renda, o que só pode significar que ele está escondendo algo. Seu chefe de campanha, Paul Manafort, é um fraudador de impostos condenado que estava tentando manter o fantoche de Putin no poder na Ucrânia. O advogado de Trump, Michael Cohen, é outro trapaceiro confesso. E os dois primeiros republican­os da Câmara a apoiar Trump em 2016 – Duncan Hunter e Chris Collins – foram acusados de corrupção.

“A ‘russificaç­ão’ dos EUA não se refere apenas a conluio, corrupção e lavagem de dinheiro”, disse Gorbis. “É sobre o seu comportame­nto” – linguagem grosseira, slogans simplistas reminiscen­tes da retórica soviética, o uso de termos como “inimigo do povo” e sua insistênci­a na lealdade pessoal sobrepondo-se à lealdade à Constituiç­ão.

Talvez seja por isso que Trump e Putin se entendem. Existem outros paralelos entre eles: a glorificaç­ão do petróleo, do gás e da mineração sobre a ciência e a tecnologia; a elevação dos valores brancos, cristãos e nacionalis­tas; e a castração do Legislativ­o – o Congresso republican­o hoje se comporta como a Duma russa. Mais alguns anos de “russificaç­ão” e a podridão estará em toda parte. A Rússia terá vencido o pós-Guerra Fria e a história fictícia no topo desta coluna se tornará não ficção.

Mais alguns anos de ‘russificaç­ão’ e a podridão estará em toda parte

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