O Estado de S. Paulo

Autoficção no palco

Franco-uruguaio Sergio Blanco traz a SP a peça O Bramido de Düsseldorf.

- Leandro Nunes

A infância nos ensina que uma história é responsáve­l por abrir as portas da imaginação para um mundo em que fantasia e realidade podem conviver. Na vida adulta não sobram muito mais do que fronteiras, mas o dramaturgo Sergio Blanco está determinad­o a derrubá-las. O autor franco-uruguaio, um dos principais nomes do teatro contemporâ­neo, chega a São Paulo com O Bramido de Düsseldorf, que terá apenas duas apresentaç­ões, neste sábado, 15, e domingo, 16, no Sesc Avenida Paulista.

Sua admiração pelo Brasil é antiga. Desde a infância enxergava o País como “exótico e imenso, fora das proporções”. Nascido em Montevidéu, Blanco faz parte de uma família de atores e escritores, mas sua relação com a língua espanhola não lhe deu inspiração para criar. Desde cedo estudou francês e apaixonado pelo idioma conseguiu uma bolsa de estudos na França. “Com a língua francesa, percebi que poderia pensar o mundo e suas relações.”

Nos últimos dois anos, suas peças Kiev e A Ira de Narciso foram produzidas no Brasil. A primeira retoma os 100 anos de O Jardim das Cerejeiras, de Chekhov, mas é na segunda que sua ideia de autoficção se instaura. “Adotei o que fazem no campo novelístic­o para o teatro, ao mesclar relatos reais com ficção.” Em A Ira, o ator Gilberto Gawronski interpreta o próprio autor ao narrar sua passagem pela Eslovênia, durante um congresso (leia ao lado). No quarto do hotel, uma mancha vermelha atiça a curiosidad­e do personagem que descobre pistas sobre um assassinat­o ocorrido ali. O mesmo se dá em O Bramido..., que retoma a história de agonia e morte do pai do autor em uma clínica na cidade alemã, mesma região em que atuou o Vampiro de Düsseldorf, um assassino em série condenado à pena de morte por decapitaçã­o, em 1929. “Parto de um episódio ou memória e projeto em uma paisagem fictícia.”

Outro dado essencial para esse jogo está na atuação. “É preciso restabelec­er o contato do ator com a plateia. É um vínculo que fortalece a história”, garante. “Em uma biografia, a presença de documentos serve para firmar esse pacto da verdade. No teatro, teremos um pacto de mentira.”

De fato, a proposta subverte a ideia tradiciona­l de contar uma história já que mobiliza no espectador um questionam­ento sobre o que está sendo representa­do no palco. “Em minhas peças, o texto discute questões filosófica­s e também oferece uma chance de provocar uma transforma­ção no campo estético.”

É algo que tem criado raiz no Brasil. O espetáculo Kassandra, de Blanco, retrata a personagem da mitologia grega, que foi espólio da Guerra de Troia, como uma dançarina se apresenta em uma boate. Em Florianópo­lis, a peça da companhia La Vaca completou seis anos em cartaz, com a atriz Milena Moraes. Na montagem, o público assume o papel de cliente da casa. “Estreamos na mais tradiciona­l casa de shows eróticos da ilha. No início, as pessoas não entendiam se era um espetáculo ou um show de strip-tease.” Nos seis anos em cartaz, Kassandra já passou por 13 casas da região e chegou a diferentes públicos e lugares. “A peça me aproximou das mulheres trans e com ela também me apresentei na Capital Federal.”

Se continuar assim, as obras de Sergio Blanco têm futuro garantido por aqui. “Toda escritura pode alterar uma realidade”, acrescenta ele.

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NAIRÍ AHARONIÁN Mirada. ‘Bramido de Düsseldorf’ chega a SP
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NAIRÍ AHARONIÁN Real inventado. Pai do autor sofre em clínica
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ROLF ABDERNHALD­EN Mirada. Espetáculo do Mapa Teatro também chega a SP

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