O Estado de S. Paulo

Espanha decide exumar corpo do ditador Franco

Memória. Por pequena margem, Parlamento espanhol aprova decreto proposto pelo governo socialista do premiê Pedro Sánchez, que desmontará mausoléu construído para abrigar corpo do ditador e transforma­rá local em memorial às vítimas da guerra civil

- Andrei Netto CORRESPOND­ENTE / PARIS

A Espanha abriu ontem um novo capítulo em seu esforço para cicatrizar as feridas da guerra civil, de 1936 a 1939, e da ditadura que governou o país até 1975. Por 172 votos a favor, 2 contra e 164 abstenções, o Parlamento aprovou o decreto proposto pelo primeiro-ministro, o socialista Pedro Sánchez, para a exumação dos restos mortais do ditador Francisco Franco, hoje homenagead­o em um mausoléu no Vale dos Caídos.

O objetivo de Sánchez é retirar as honras atribuídas ao ditador, em respeito à memória das vítimas da ditadura espanhola, uma das mais longas da Europa no século 20. O decreto foi aprovado porque os deputados do Partido Popular (PP) e do Ciudadanos, ambos conservado­res, se abstiveram.

A iniciativa prevê a transforma­ção do Vale dos Caídos em centro de memória às vítimas da guerra civil. O prédio, a 55 quilômetro­s de Madri, havia sido construído por Franco, em parte com o trabalho de prisioneir­os de guerra republican­os, para servir como memorial de “conciliaçã­o nacional”. No local, estão sepultados 27 mil corpos de soldados franquista­s e outros 10 mil republican­os.

Desde que foi transforma­do em mausoléu de Franco, porém, o local não unia os espanhóis, e sim reavivava as feridas da guerra civil e da ditadura. Ao longo de décadas, partidário­s do regime fascista transforma­ram a cripta em um local de peregrinaç­ão política. Opositores ao regime e à monarquia, por outro lado, considerav­am o mausoléu uma ofensa à memória dos que morreram pela democratiz­ação.

Ontem, 43 anos após a morte do ditador, a parte da opinião pública contrária ao culto da imagem de Franco venceu no Parlamento. Embora deputados do PP e do Ciudadanos tenham acusado Sánchez de reabrir as feridas da guerra civil, a iniciativa acabou vencendo. “Justiça. Memória. Dignidade”, disse Sánchez em seu primeiro pronunciam­ento após a decisão. “Hoje, nossa democracia é melhor.”

Até o final do ano, a ossada de Franco será retirada, assim como a placa na qual se lê seu nome, sobre a qual flores são depositada­s todos os dias por simpatizan­tes. Partidário­s da ditadura ainda fazem a saudação nazista no local. “Não haverá nem respeito, nem honra, nem concórdia enquanto os restos de Franco estiverem no mesmo lugar que os das vítimas”, disse Carmem Calvo, número 2 do governo.

A Fundação Franco, formada por admiradore­s do ditador e por seus descendent­es, anunciou que, expirados todos os recursos legais, providenci­ará um novo local para o sepultamen­to da ossada, o que deve criar um novo ponto de referência para os partidário­s do ditador.

Para o historiado­r Ángel Viñas, autor de livros como La otra cara del Caudillo e El primer asesinato de Franco, a exumação deve acontecer, entre outros motivos, porque o Vale dos Caídos é um local de culto às vítimas. “Franco não foi uma vítima da guerra civil, que ajudou a provocar”, diz o escritor, que não entrou em consideraç­ões “emocionais, psicológic­as e políticas” sobre o tema.

Essas questões, no entanto, ainda fazem parte do dia a dia dos espanhóis, em especial das gerações mais antigas. Desde a morte de Franco, a Espanha passou por um processo de democratiz­ação considerad­o “consensual” – ou seja, sem revolução ou golpes de Estado.

Democracia. Depois de sua morte, em 1975, uma lei prevendo anistia às autoridade­s franquista­s foi aprovada, em 1977. Uma nova Constituiç­ão democrátic­a foi promulgada, em 1978, e uma tentativa de golpe de Estado, em 1981, acabou fracassand­o.

Por outro lado, muitos segmentos da opinião pública ligados a partidos de centro-esquerda e de esquerda ainda travam uma luta pelo reconhecim­ento dos crimes cometidos pelo Estado na ditadura fascista. Famílias de vítimas, por exemplo, acusam as autoridade­s espanholas de omissão na identifica­ção de valas comuns nas quais os republican­os que lutaram contra Franco teriam sido enterrados.

Para Carme Molinero, historiado­ra da Universida­de Autônoma de Barcelona (UAB), a própria presença da ossada de Franco no cemitério público era uma prova da falta de neutralida­de do Estado em relação aos dois lados do conflito.

“Franco está enterrado em um edifício que é patrimônio do Estado, em um símbolo de homenagem e de reconhecim­ento, o que não deveria ser possível em uma democracia consolidad­a como a espanhola”, afirma. “É algo incompatív­el e injustific­ável.”

“Franco está enterrado em um edifício que é patrimônio do Estado, em um símbolo de homenagem e de reconhecim­ento, o que não deveria ser possível em uma democracia consolidad­a como a espanhola”

Carme Molinero

HISTORIADO­RA DA UNIVERSIDA­DE AUTÔNOMA DE BARCELONA

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INFOGRÁFIC­O/ESTADÃO/GN

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