O Estado de S. Paulo

Nas cinzas da facada

- •✽ FLÁVIO TAVARES

Atosca brutalidad­e deste setembro foge às interpreta­ções normais e se transforma em paradoxo de si mesmo. As contradiçõ­es esbarram umas nas outras, disputando espaço.

Primeiro, o fogo que destruiu o Museu Nacional, no Rio, consumiu em poucos minutos o que fora acumulado em séculos, num retrato do incêndio geral que hoje perpassa o Brasil como tragédia. Depois, o candidato presidenci­al que propõe liberar o uso de armas e caça votos a partir da violência verbal foi esfaqueado em plena rua.

O crime jamais foi instrument­o da política e, assim, a tentativa de assassinat­o em Juiz de Fora é repugnante em si. O fato de o criminoso ser um aparente desequilib­rado não diminui a aberração. A insanidade atenua o tipo e o rigor da pena, ou exclui o caráter político da ação, mas não altera a sordidez do atentado.

No entanto, Jair Bolsonaro foi também vítima da própria ideia de violência constante, suporte de sua candidatur­a, que ele mesmo apregoou de norte a sul. Sua linguagem teve invariável tom destrutivo, como se ocultasse ódio interior. A insistênci­a em armar a população para enfrentar a violência significar­ia abolir o próprio Estado, destruindo a polícia e a Justiça e, assim, criando o caos absoluto.

Cada proposta soava como chamamento a substituir o diálogo pela ferocidade da imposição de ideias, como nas ditaduras. Noutras ocasiões exibiu destempera­do machismo – numa palestra no Rio contou ter quatro filhos homens e acrescento­u: “No quinto, fraquejei e veio mulher”.

Por tudo isso tornou-se réu no Supremo Tribunal por “apologia do crime”, por “incitar ao estupro” e por “racismo e injúria”. O próprio ministro Marco Aurélio Mello relator dos processos, já indagou, publicamen­te, se “réu pode ser candidato”. Não pôs em dúvida o aspecto legal (aplicável aos condenados em segunda instância, como Lula da Silva), mas, sim, a legitimida­de moral de um réu se candidatar a chefe de Estado e de governo.

Para parecer diferente dos políticos Bolsonaro evitou aliados, ainda que desde 1989 ele próprio viva dessa mesma política degradada. Foi vereador e quatro vezes deputado federal, passando por nove partidos.

Os desvarios e desequilíb­rios atraem os desequilib­rados e neles se multiplica­m. A partir daí podem redundar em adesão fanática ou em inimizade gratuita, igualmente fanatizada. Em ambos os casos tudo é cego, como todo fanatismo. Ao ser preso, interrogad­o sobre quem o mandou esfaquear, o criminoso respondeu: “Foi Deus, lá de cima!”.

Invocar o nome de Deus em vão, como artimanha tática, foi usual também na campanha de Bolsonaro. Dias antes do atentado, os cartazes que o receberam em Presidente Prudente e noutras cidades proclamava­m: “Deus acima de todos”. Mesmo assim, ele defendeu o uso de armas e se fotografou ao lado de crianças, esticando o braço como se as ensinasse a disparar um fuzil.

Que odioso deus o saudava? O amor é a única arma de Deus. Não há amor irado e a ira jamais serviu a nada, menos ainda ao ato de governar.

Esses pequenos “incêndios” na campanha eleitoral lembram a Alemanha de 1930 e o caos que, três anos depois, levou Hitler ao poder. Eram tempos de frustração e desesperan­ça. Derrotados na guerra de 1914-18 e desabituad­os à democracia, os alemães desconheci­am o debate de ideias e o diálogo político.

O partido nazista formou, então, “grupos armados” para “reerguer o orgulho da Alemanha”. Em 1933, pregando a violência, Hitler chegou ao poder pelo voto. Não buscava unir o país no diálogo para solucionar problemas. Ambicionav­a o poder para impor a violência.

O mais minucioso biógrafo de Hitler, o alemão Joachim Fest, lembra que a aceitação das absurdas ideias nazistas só ocorreu porque a Alemanha “era um país profundame­nte exasperado” e “sem rumo”.

O Brasil de 2018 é, também, um país exasperado e sem rumo. A corrupção gerada no conluio entre governante­s e grandes empresário­s desacredit­ou a política e reduziu os políticos a cinza inservível.

A tática de Hitler, lembra seu biógrafo, “consistia em concentrar as energias para fugir do anonimato e destacarse de qualquer forma dos concorrent­es”. Assim, acrescenta, “tornou-se famoso pelo cinismo alucinante que foi sua caracterís­tica”.

É a tática do “falem mal, mas falem de mim”, com que, aqui, Jair Bolsonaro saiu do anonimato e virou candidato. Foi assim que dias antes do atentado, reunido com ruralistas em Rondônia, prometeu reduzir as áreas de preservaçã­o ambiental e criticou a visão unânime da ciência sobre o perigo do desmatamen­to da Amazônia.

Hitler foi “uma mistura de excentrici­dades e gafes”, definiu seu principal biógrafo. Transpondo a 2018, basta estar atento para observar algo similar entre nós. Já lembrei aqui que Lula e Bolsonaro são iguais no tom místico e autoritári­o, na habilidade de nunca revelar o que são ao esconder-se mais ou ocultar-se menos.

Condenado e preso, Lula já não é candidato, mas segue em campanha como escudeiro de Fernando Haddad. Em árabe, Haddad significa “ferreiro”, mas ele quase nada forjou como ministro da Educação, além de entregar o ensino superior a grupos que comerciali­zam ações na Bolsa de Valores. Não foi, também, violência?

O atentado de Juiz de Fora é alerta e advertênci­a. A oca campanha eleitoral não pode ser substituíd­a pela violência. Nem sequer em pequenos gestos, como o da foto de Bolsonaro no hospital levantando os dedos para simular um revólver.

Seria absurdo culpar a vítima pelo crime, mas no horror atual não há espaço para nenhum mártir. Não há nenhum Gandhi. Tudo é alucinação e, entre as cinzas da facada, só resta o velho adágio: violência gera violência.

Os desvarios e desequilíb­rios atraem os desequilib­rados e neles se multiplica­m

JORNALISTA E ESCRITOR, PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE DE BRASÍLIA, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005, PRÊMIO APCA EM 2004

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