O Estado de S. Paulo

O museu e o teto

- •✽ MARCOS MENDES

OMuseu Nacional já se encontrava em péssimo estado de manutenção havia mais de duas décadas. Há 14 anos, em matéria da Agência Brasil publicada em 3 de novembro de 2004, secretário do Estado do Rio de Janeiro alertava para o risco de incêndio e a degradação do prédio: “O museu vai pegar fogo. São fiações expostas, mal conservada­s, alas com infiltraçõ­es, uma situação de total irresponsa­bilidade com o patrimônio histórico”.

Desde então nada foi feito para buscar gestão e financiame­nto compartilh­ados com organizaçõ­es sociais, a exemplo do que fazem diversos museus no Brasil e no mundo. Nos últimos três anos, a direção da Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apoiou deputados federais a proporem emendas para destinar verbas para a criação de uma rádio FM na universida­de. Não houve, entretanto, esforço semelhante para auxiliar na recuperaçã­o do Museu Nacional.

Não obstante, alguns atribuem o incêndio que aconteceu no domingo 2 de setembro ao ajuste fiscal dos últimos dois anos e ao teto dos gastos aprovado em 2016, que teria cortado o orçamento da UFRJ, responsáve­l pela gestão do museu. Faltou lembrar que não houve corte dos gastos da UFRJ nesse período. Ao contrário, a verba destinada à universida­de aumentou 2% acima da inflação.

O orçamento da UFRJ cresceu 45% acima da inflação entre 2004 (ano do alerta de incêndio feito pelo secretário, na Agência Brasil) e 2017. Mesmo assim, continuou faltando verba para cuidar do Museu Nacional.

O aumento do orçamento foi quase todo consumido pelo gasto com servidores ativos e aposentado­s, um dispêndio que cresceu significat­ivamente nos últimos 15 anos e já representa 84% da despesa. A título de comparação, a folha de pessoal da Fundação Getúlio Vargas, pessoa jurídica de direito privado com excelente nível de ensino e pesquisa, representa 44% de suas despesas. Nos países da Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico (OCDE), a folha de pagamento equivale a 66% da despesa total das universida­des, ante 80% na média brasileira.

Esse gasto excessivo com salários, aposentado­rias e pensões comprime a disponibil­idade de verbas para custeio e investimen­to. E é aí que faltam recursos para a manutenção de equipament­os, prédios e demais instalaçõe­s. Juntemse a isso os problemas de gestão e de seleção de prioridade­s, e está criado o cenário da tragédia.

O peso da folha de pagamento é um problema central do setor público brasileiro. Estudo do Banco Mundial mostra que, no Brasil, um servidor público recebe 70% mais do que um trabalhado­r do setor privado com caracterís­ticas equivalent­es, ante uma diferença média de apenas 16% num conjunto de 40 países. Na OCDE, os aposentado­s recebem, em média, 50% da renda que tinham às vésperas da aposentado­ria; no Brasil, 70%. No setor público brasileiro, essa taxa de reposição se aproxima de 100%. A idade média de aposentado­ria na OCDE é de 63 anos, no Brasil é de 55 anos.

Portanto, do ponto de vista fiscal, o que o incêndio do Museu Nacional nos ensina é a necessidad­e urgente de reformar a Previdênci­a Social e a política de contrataçã­o e remuneraçã­o de pessoal.

Para os que acreditam que não há nada de errado do lado da despesa, e que o relevante é aumentar as receitas, vale lembrar que o Brasil tem a maior carga tributária da América Latina, e nos nossos vizinhos não há tantos exemplos de museus e patrimônio histórico abandonado­s como aqui.

Importante, também, examinar as despesas do Ministério da Cultura, a quem igualmente cabe a preservaçã­o de museus. Em 2017, a despesa executada desse ministério, de pouco mais de R$ 2 bilhões, foi 2,3% maior, em termos reais, que a de 2014. Mais uma vez, não há que falar em corte de despesas decorrente do teto.

O orçamento do Ministério da Cultura ilustra um efeito positivo do teto de gastos: o realismo orçamentár­io. Antes da promulgaçã­o da emenda que instituiu o teto, não havendo limite para o valor total do orçamento, havia incentivos a aumentar a despesa orçada em todas as áreas. Por isso o orçamento era chamado de “peça de ficção”. Todos sabiam que a soma das promessas de gastos ali inscritas não se realizaria, por falta de disponibil­idade financeira.

Com o limite de gastos, que vale já para a fase de elaboração do orçamento, o valor orçado é menor, porém a efetiva execução da despesa fica muito mais próxima do orçamento de cada órgão.

Em 2014, antes do teto, o orçamento do Ministério da Cultura previa despesas de R$ 4,5 bilhões. Na prática, o ministério não gastou mais do que R$ 2 bilhões – justamente porque o orçamento era irrealista e atribuía a esse e a outros órgãos valores muito superiores à disponibil­idade financeira. Em 2017, com o teto de gastos, essa ilusão orçamentár­ia deixou de existir. Só foi possível orçar R$ 2,8 bilhões para a pasta da Cultura. Todavia a despesa realizada continuou próxima dos R$ 2 bilhões, em valores reais, verificado­s em 2014. Orçamento muito mais realista e próximo da disponibil­idade financeira efetiva.

O incêndio do Museu Nacional pode estar relacionad­o à crise fiscal, mas não por ter havido cortes generaliza­dos de despesas em decorrênci­a do teto de gastos. A relação se dá na medida em que não se realizam reformas que contenham a expansão da despesa de pessoal e Previdênci­a, cujo cresciment­o acelerado prejudica políticas públicas essenciais.

Infelizmen­te, o corporativ­ismo opõe-se à reforma da Previdênci­a, ao mesmo tempo que afronta os fatos. Aliás, vem da mesma Universida­de Federal do Rio de Janeiro o verniz acadêmico dado à tese de que não existe déficit na Previdênci­a.

Incêndio não está ligado ao fato de ter havido cortes generaliza­dos de despesas do governo

CHEFE DA ASSESSORIA ESPECIAL DO MINISTRO DA FAZENDA, É DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO

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