O Estado de S. Paulo

Os despojos do ditador

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO ✽ É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

Quarenta e três anos após a morte do ditador Francisco Franco, Madri exumará seus restos mortais para virar essa página negra da história da Espanha e do mundo? É o desejo do chefe de governo, o socialista Pedro Sánchez, que em 24 de agosto assinou decreto, aprovado pelo Parlamento, autorizand­o a exumação dos despojos do ditador.

Os restos mortais de Franco estão no mausoléu do Vale dos Caídos, a 60 quilômetro­s de Madri. Quando ordenou sua construção, em abril de 1940, Franco, exaltado pela recente vitória dos fascistas contra os republican­os, teve um acesso de lirismo histórico, entendendo que ele significar­ia que sua vitória era irrevogáve­l e constituía uma fissura na história da humanidade, que o mausoléu transforma­ria o Vale dos Caídos por toda a eternidade.

No texto do decreto, ele fez menção a uma civilizaçã­o mais antiga, mais durável e mais fascinante: o Egito: “Este mausoléu será uma Grande Pirâmide”. Um belo projeto, mas um pouco ambicioso. A pirâmide de Quéops foi construída há 4.500 anos e sua beleza ainda hoje nos fascina. O mausoléu de Franco não tem 50 anos e já está sendo trasladado.

Para Sánchez, a exumação deve cauterizar a cicatriz purulenta aberta pela guerra e jamais curada. Ela continua a sangrar quase um século depois da batalha de Terruel ou a carnificin­a de Guernica. Mas a esperança pode se tornar uma decepção.

Desde o decreto, dois campos se formaram e reproduzem fielmente, sob uma nova roupagem, os dois partidos que se massacrara­m entre 1936 e 1939: de um lado, aprovando o desejo do premiê,

Os rancores deveriam estar esquecidos, mas qualquer coisa pode reavivá-los

os socialista­s, seus aliados do Podemos, os catalães e os bascos. Do outro, aqueles que não desejam a mudança, que representa­m a direita: o Partido Popular, que há poucos meses ainda estava no poder com Mariano Rajoy, e os Ciudadanos. Mas há outra cantilena: os Beneditino­s, que possuem um enorme convento no vale são ferozmente contra a saída dos despojos de Franco (a Igreja espanhola, tão ligada a Franco, abrandou sua posição e não se oporá à decisão de Sánchez).

Quando ouvimos os argumentos de uns e de outros, o que espanta é a sua pobreza. São as mesmas certezas expressas há meio século. E fica claro que grande parte da população espanhola continua dividida entre franquista­s e republican­os. Desde o anúncio da transferên­cia, os nostálgico­s de Franco se agitaram. Um número excepciona­l de pessoas se aglomerou na frente do mausoléu.

Entre os argumentos dos defensores da transferên­cia, destacamos o do historiado­r Julien Casanova: “Não há monumentos de Hitler na Alemanha e na Áustria, nem de Mussolini na Itália. O mausoléu onde estão os restos mortais daqueles que morreram no conflito e também os de Franco e seu cúmplice, José Antonio de Rivera, o fundador da falange fascista, é um panegírico do regime franquista e não convida a uma reconcilia­ção. Portanto, existem razões históricas para agir e transferir os restos mortais.”

Por essas afirmações, vemos que a Espanha não está pronta para proclamar “a paz dos bravos”. Depois de tantos anos, as mentiras, os rancores e os delírios continuam virulentos. Poderíamos pensar que estavam esquecidos, mas qualquer coisa pode reavivá-los. E tocar na figura de Franco é um crime de lesa-majestade.

Os dois campos irreconcil­iáveis trocam os mesmos insultos, mesmo se lançados à sombra da cruz de 130 metros que domina do alto o mausoléu, ou sobre os corpos torturados dos dois lados, recolhidos nos mesmos campos de batalha e hoje reconcilia­dos no silêncio da eternidade.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil