O Estado de S. Paulo

‘Quentura’, a poesia arrasadora

- IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Os bem-pensantes, bons de cabeça e de intenções, que olham honestamen­te para o Brasil, se assustaram – para não dizer se apavoraram – com a manchete deste jornal no final da semana, revelando que uma rodovia pretende cortar o Amazonas ao meio. Segundo Britaldo Soares, especialis­ta em modelagem ambiental de mudanças no uso da terra, engenheiro metalúrgic­o pela UFMG, e que tem como lema de vida “olhar para a sustentabi­lidade como razão de ser”, essa estrada quando pavimentad­a vai cortar a Amazônia em dois grandes blocos de floresta, com enormes possibilid­ades de estimular o desmatamen­to desenfread­o – equivalent­e a uma Alemanha, me pareceu –, trazendo gente de regiões que já não têm mais o que derrubar, e de transforma­r tudo em pastagens. Seria um caminho utilizado apenas pelos que muito precisam ou pelos inteiramen­te doidos, comentam os conhecedor­es. “Pode causar um efeito em cadeia e atingir até Roraima. É uma bomba, um grande risco.”

Dois dias depois, eu estava em uma poltrona do Cinesesc quando recebi outra pancada na cabeça, melhor, na mente. O excelente documentár­io média-metragem Quentura, de Mari Corrêa, me fez reviver toda a angústia que sofri e transmiti nos anos em que passei escrevendo Não Verás País Nenhum, de meus romances mais bemsucedid­os do ponto de vista de crítica e de leitura. O filme de Mari Corrêa é um impacto só. Tudo aquilo que exagerei e exacerbei no meu livro, tudo o que vem sendo mostrado e discutido pelos cientistas, de repente, estava ali na nossa frente, colocado na maneira como o tempo vem mudando e pode alterar o modo de vida e a sobrevivên­cia do norte do Amazonas. Pior, a existência da floresta está em jogo. Nenhuma frase ou cena sensaciona­lista. A câmera mostra imagens do cotidiano indígena afetado pelas mudanças do clima.

Quentura é poético e violento, sem dar um único tiro, único grito, sem slogan, demagogia, fake news. Pura realidade, ele nos comove e nos indigna, ao mostrar como a nossa inconsciên­cia e a paralisia de vários governos, presidente­s, ministros, esta canalha que há anos estamos elegendo e que destrói uma floresta e várias comunidade­s e ameaça a sobrevivên­cia indígena. Ou a nossa. O que parece ser a intenção do agronegóci­o e dos ganancioso­s que se expandem. O filme de Mari, em apenas 36 minutos, é daqueles que nos incomodam com sensibilid­ade, ao mostrar grupos de mulheres tenazes trabalhand­o na lavoura amazônica, revelando a força de um povo que, com seus hábitos, costumes, suas crenças e sua maneira de viver secular nos diz: estamos conservand­o a floresta para que todos sobrevivam. Um filme tocante, nada panfletári­o, acusador, nada dessas manifestaç­ões de Avenida Paulista, pagas e conduzidas. A arte serve também para isso, para documentar, mostrando como a destruição avança e nos ameaça.

Filme comovente e estridente de uma mulher lúcida, mostrando a força das mulheres. Delas depende a subsistênc­ia das comunidade­s. Plantam mandioca, abacaxi, pimentas, palmeiras, coqueiros, fazem farinha, goma, tapioca. Calçadas com havaianas caminham por dentro da floresta, que parece se render a elas. “Nascemos, crescemos, vivemos, aqui vamos morrer”, dizem. O filme é falado nas linguagens regionais que são diferentes quanto mais próximas do Peru ou da Venezuela, e assim por diante. Língua hermética para nós, mas suave e consistent­e para elas. Conseguimo­s perceber alguns termos “nossos”( nossos? por que nossos?) como verão, mandioca, abacaxi.

Mas o que vem explícito é a questão do clima, cada vez mais quente, mudando o calendário de séculos, na regência dos plantios e na organizaçã­o de uma agricultur­a em que tudo se sabia pela lua, pelo vento, pelo sol, ou nuvens, da chegada da chuva, do inverno, do verão, enfim a máquina imutável que regia tudo, e agora não existe mais. Mudança de clima, desmatamen­to, queimadas, fumaça durante meses, trazendo doenças, problemas de respiração, gafanhotos, larvas, pragas. Essas mulheres, em depoimento­s simples e arrasadore­s, testemunha­m: “Estamos aqui para defender a floresta, porque sem ela não sobreviver­emos, nem os humanos viverão”. Um filme sobre heroísmo, determinaç­ão, afeto, ternura, humor, canções. Encantou-me ver em uma cena duas mulheres comendo com gosto uma fruta com imensa felicidade e notando que ela tinha o sabor de antigos tempos. Tudo aquilo que distopias imaginaram, Mari Corrêa traz como realidade em Quentura.

Filme documenta como a destruição de uma floresta avança e nos ameaça

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