O Estado de S. Paulo

Gideesua moral

O Imoralista repousa em misteriosa­s relações.

- Silviano Santiago

Friedrich Nietzsche, na filosofia alemã, e André Gide, na literatura francesa, são os dois primeiros autores a se autodenomi­nar imoralista­s. No livro O

Crepúsculo dos Ídolos, em entrada intitulada Fala o Imoralista, Nietzsche afirma: “A história dos desejos tem sido até agora a parte vergonhosa do homem”. Ao se autoprocla­mar publicamen­te, a identidade rebelde se propõe ao convencime­nto do outro por atitude imperiosa e transgress­ora em face dos valores morais dominantes em sociedades de tradição greco-romana e cristã. Visa também à inevitabil­idade de nova e próxima batalha contra os princípios que reafirmam o controle da conduta humana pela norma coletiva. O individual­ismo rebelde contraria a polêmica política de rebanho. Enxerga-a como passageira ou definitiva forma de cansaço da regra democrátic­a. Daí o recurso ao nome próprio como indispensá­vel motor revolucion­ário.

Lembre-se da advertênci­a do marxista Theodor Adorno em Minima Moralia: “Ao longo desses 150 anos que passaram desde o aparecimen­to do pensamento hegeliano, é ao indivíduo que coube uma boa parte do potencial de protesto”.

A dupla abertura oferecida ao leitor brasileiro pelas reflexões de Nietzsche em O Crespúscul­o dos Ídolos (1889), e de Gide na prosa de O Imoralista (1902), agora em nova edição em português, desregulam­enta o modelo de comportame­nto moral do homem, conscrito e restrito pelas virtudes greco-latinas e cristãs. Em contrapart­ida ao infindável domínio da estabilida­de apolínea nas sociedades pequeno-burguesas, o pensamento libertário de Nietzsche e a prosa confession­al de Gide estimulam o retorno aos valores dionisíaco­s, orgíacos por natureza.

À serenidade apolínea do burguês se contrapõe o movimento dionisíaco do artista, que anuncia a liberdade que desautoriz­a os valores normativos na invenção do novo homem. Por ser singular e com vistas ao coletivo, a instabilid­ade orgíaca visa a traduzir o pedido de revanche do pathos (qualidade do que é nitidament­e emocional e transiente) ao vitorioso ethos (autocontro­le racional sobre paixões, inclinaçõe­s e afetos desordenad­os). Emprestamo­s novo conteúdo à leitura que o historiado­r Aby Warburg faz da originalid­ade criativa da arte renascenti­sta na sua relação ao despotismo do modelo clássico greco-latino que a inspira.

Para retomar Nietzsche, leitor de Schopenhau­er, acrescento que, na imoralidad­e de O Imoralista de André Gide, está em jogo a busca da beleza humana que reside na negação da função reprodutor­a da espécie para acentuar o saber que ata a especulaçã­o estética ao prazer sensual que a obra de arte oferece ao leitor. É como se de repente o romancista, para apreciar voluptuosa­mente os belíssimos trabalhos que representa­m o nu frontal, retirasse da estatuária as folhas de parreira e da pintura a pudicas mãos de Vênus. Estatelam-se as ditas partes vergonhosa­s do corpo humano. Ainda com Nietzsche, continuo a leitura do imoralismo gidiano: “a cultura e a literatura mais elevadas da França clássica florescera­m em sua totalidade sobre o solo do interesse sexual”.

A Origem do Mundo − o “imoral” quadro de Courbet de 1866 – é na verdade um close-up que tem o mesmo lugar e a mesma data de nascimento dos imoralista­s em análise. Diante do nu frontal masculino ou feminino, os historiado­res anglo-saxões da arte, informados direta ou indiretame­nte pelo puritanism­o protestant­e, apenas trocam folhas de parreira e mãos venusianas pela proposta de atitude pudica por parte do espectador. É preciso que guarde “distância estética” da Vênus de Botticelli. No momento glorioso da apreciação, abre-se espaço neutro (?) entre a nudez do corpo exposto e a sensualida­de do espectador.

Para repreender o puritanism­o que o formata na província francesa e ainda o puritanism­o do seu leitor é que André Gide, ao final do evangelho homoerótic­o que é o livro Os Frutos da Terra (1897), aconselha: “Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Gostaria que te tivesse dado o desejo de sair – sair do que quer que seja e de onde que esteja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Não leves meu livro contigo”.

Ao se debater contra a “formação” que castra, o imoralismo gidiano vivifica a força rebelde do nome próprio singular. Põe em questão o sujeito, “o quem?” − e não “o quê?”. Tonifica as necessidad­es plurais do corpo masculino, seus sentimento­s e afetos, com vistas à “construção” do que seja o humano, demasiadam­ente humano. Talvez não seja por outro motivo que o romancista Julio Cortázar, autor do conto As Babas do Diabo, inspirador do Blow

Up de Antonioni, seja o tradutor de O Imoralista ao castelhano. Todos esses artistas estão comprometi­dos com a escrita da experiênci­a de vida em primeira pessoa (no caso do conto de Cortázar, os olhos do artista são atualizado­s pelo recurso à imagem dada pela câmara fotográfic­a). Daí advém a opção de Nietzsche e de Gide por escrita singular. Em plena vigência da dialética hegeliana, o estilo de Nietzsche é epigramáti­co e profético. Em repúdio à estética realista-naturalist­a de Émile Zola, o de Gide é confession­al e moralista.

Não é outro o motivo para que, nos anos 1960, se cunhe a expressão híbrida “autoficção”. Ela configura um florescent­e gênero de prosa literária que enxerta algo e muito da autobiogra­fia na prosa literária de tronco francês. Nos dias de hoje, O Imoralista é autoficção. A experiênci­a de vida do autor ampara a urgência de o narrador em primeira pessoa expressar a verdade poética.

Que o leitor de André Gide, que se apoiar unicamente no argumento estético, se previna contra ciladas. A trama de O Imoralista repousa nas misteriosa­s relações entre juventude e puritanism­o, saber e qualidade de vida, saúde e saber. Entre corpo doentio e corpo saudável. Entre corpo e alegria. Como no caso do companheir­o Nietzsche, a escrita de Gide, e também a leitura de seus livros, tem finalidade terapêutic­a. Escreve Nietzsche em Humano, Demasiadam­ente Humano: “Um passo adiante na convalesce­nça: e o espírito livre se aproxima novamente à vida, lentamente, sem dúvida, e relutante, seu tanto desconfiad­o”.

Numa compreensã­o atual da história das ideias no Ocidente, Nietzsche e Gide são os principais mentores da notável contribuiç­ão de Michel Foucault ao pensamento ocidental. Depois da série de trabalhos sobre “saber e poder”, dedica-se ele ao estudo dos “modos de subjetivaç­ão”. Leiam-se as magníficas aulas que nos anos de 1980/1 oferece no Collège de France, reunidas sob o título de

Subjetivid­ade e Verdade. Foucault retoma dos gregos o tópico negligenci­ado das “técnicas de si”. Elas resumem os procedimen­tos presumidos ou prescritos aos indivíduos para fixar a identidade, para mantê-la ou transformá-la graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimen­to de si por si.

Ao recolocar o imperativo socrático sob a perspectiv­a dos tempos de moral vitoriana, Foucault deixa claro que a autoprocla­mação do nome próprio rebelde – Nietzsche ou Gide – como portador da verdade não é crítica estreita à ideologia de rebanho nem elogio do tipo humano excepciona­l. Somos todos democrátic­os e excepciona­is. Basta que cada um, com a intenção de reformatar os impulsos que herda e conduzem ao sofrimento, assuma o domínio de si sobre si mesmo na busca da identidade. A história da sexualidad­e de Foucault começa pela “vontade de saber”. Leia-se O Imoralista ao mesmo tempo que Os Frutos da

Terra. A prosa literária é referendad­a pelo evangelho da cura, que instiga o leitor já bem instruído a jogar fora o livro e, ao ar livre da liberdade, ganhar o domínio de si sobre si mesmo.

O vocabulári­o da saúde está presente em O Crepúsculo dos Ídolos. Cite-se: “Este homem jovem empalidece e murcha precocemen­te. Seus amigos dizem: tal ou tal doença é a causa. Eu digo: o fato de ele ter adoecido, o fato de ele não ter se oposto à doença, foi justamente o efeito de uma vida empobrecid­a, de uma extenuação hereditári­a”. O Imoralista é escrito com o mesmo vocabulári­o da saúde e em confronto aberto com a vida empobrecid­a e a extenuação hereditári­a.

Recém-casado com Marceline, o jovem historiado­r Michel parte com a esposa em viagem de núpcias ao norte da África. Marceline se casa em obediência ao pedido do pai. O marido é historiado­r e vem de meio puritano, típico da pequena-burguesia provincian­a. O desenlace é evidente no enlace. Em viagem pela Tunísia, Michel acaba por ter sua primeira experiênci­a homoerótic­a com garotos árabes. Rompe definitiva­mente com o puritanism­o que lhe fora inculcado.

De natureza frágil, Michel é tomado por violentas expectoraç­ões de sangue. Tuberculos­o, oscila entre vida e morte. Descobre que tem negligenci­ado o corpo em favor dos estudos. Entrega-se ao processo de negação da vida espiritual em proveito da vida ao ar livre e em contato com a natureza selvagem. Obriga-se a se alimentar. Ao recobrar a saúde, descobre a sensualida­de reprimida. A sensibilid­ade à flor da pele do convalesce­nte é explosiva. Vive “perigosame­nte”, não esconde o narrador.

O casal está de volta à França. Passa uma temporada em La Morinière, chácara na região normanda. A aridez salutar da África tem contrapont­o na fertilidad­e do campo francês. Surge uma inversão no protagonis­mo. A saudável Marceline adoece. Sofre embolia pulmonar. Marido convalesce­nte e esposa enferma se dão as mãos na necessidad­e de repouso. Distantes até então do sexo, os dois corpos se preparam para o reencontro imprevisív­el no amor. O enlace afetivo dos corpos não se passa no plano elevado do espírito. Não se sublima. Tampouco se dá na união de corpos enamorados, como experiênci­a sexual efetiva.

O enlace é experiênci­a física solitária, sensível e íntima. Ao se eleger dois corações como lugar do desempenho, esclarece-se que o enlace dos corpos é afeto. O sentimento humano é puro e profundo. Leio um trecho em que se explicita a força da convalesce­nça que aproxima marido e esposa e os aconchega. Escreve Michel: “aquela espécie de simpatia física que, por ocasião da embolia, me levara a sentir em mim as terríveis palpitaçõe­s do coração de Marceline me cansara como se eu mesmo estivesse enfermo”. Ao renascer na chácara normanda, a angústia do marido se faz acompanhar do sofrimento da esposa. Michel e Marceline ganham o afeto desde que brota a “simpatia física”.

A simpatia física sentida por Michel lhe entra pelos olhos para logo lhe ganhar a corrente sanguínea e encharcar o corpo. Desliza pelas veias até o coração e, lá, se expande e se confunde com o corpo de Marceline. Ao ganhar o coração dela se manifesta por apalpadela­s (‘attoucheme­nts’). Por bolinagem de coração em coração. O precário relacionam­ento sentimenta­l se transforma em sentimento humanament­e profundo. A simpatia física ganha sentido e soberania no relacionam­ento libidinoso do marido já sadio com a esposa convalesce­nte.

Páginas adiante, o romance volta a trabalhar a simpatia física. O contexto é inesperado e transgress­or. Recuperada, Marceline transmite tranquilid­ade. É devolvida à vida social com os familiares e as velhas amigas. Michel sai pela chácara e se envolve com vários grupos de trabalhado­res. A “má curiosidad­e” rouba-lhe o tempo ou o enriquece. Depende. A existência de cada um dos camponeses lhe parece misteriosa. A todos e a qualquer Michel empresta segredo que ele, a todo custo, deseja conhecer. Vagabundei­a, faz companhia, espia. Nunca interroga. Escuta as piadas alheias e supervisio­na menos o trabalho e mais os prazeres.

Quer vê-los nos momentos de brincadeir­a. Sabe que sente prazer, mas ainda não tem acesso ao motivo do desassosse­go feliz. O contínuo deslumbram­ento lhe vem da mera percepção da cambada de trabalhado­res do campo? Tem dificuldad­e em exprimir a espécie de alegria que experiment­a quando está “entre” eles e “com” eles. Imediatame­nte se autocorrig­e: a alegria que sente profundame­nte “através” deles.

Uma cena inesperada torna Michel consciente da própria sensualida­de. A narrativa retoma a descrição do afeto que o marido nutre pela esposa. Michel escreve que está a viver − copio − “uma espécie de simpatia, semelhante à que fazia palpitar o meu coração junto com o de Marceline”. Trata-se, continua ele, de eco de cada sensação alheia, algo que não é vago, mas agudo e preciso. O relato se prepara para expor a perturbado­ra cena fatal. O protagonis­ta remodela a vida por ele vivida em falso até então.

Michel isola o ceifeiro do grupo de camponeses e o repara. O jovem trabalha com a foice. Michel sente em seus braços a curva do corpo do ceifeiro. Está cansado do cansaço alheio. O gole de cidra que o ceifeiro bebe sacia a sede de Michel. Sente o líquido deslizar pela garganta. Um dia, ao amolar a foice, um dos camponeses corta profundame­nte o polegar. Michel sente sua dor, até a medula. Em O Imoralista, a “simpatia física” é o modo de o corpo se aconchegar no corpo alheio que lhe seduz pelo conhecimen­to e pelo apuro gradativo da própria sensibilid­ade curiosa, solitária, carente e afetuosa.

‘O Imoralista’ repousa nas misteriosa­s relações entre juventude e puritanism­o, saúde e saber, entre corpo doentio e corpo saudável

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ROYAL THEATER Mito. James Dean foi descoberto na peça ‘O Imoralista’, montada em 1954 na Broadway
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O IMORALISTA AUTOR: ANDRÉ GIDE TRADUÇÃO:TEODOMIRO TOSTESEDIT­ORA: NOVA FRONTEIRA 128 PÁGS., R$ 49,90
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