O Estado de S. Paulo

O desafio do liberalism­o

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Oliberalis­mo é demonizado dia e noite por forças retrógrada­s e antidemocr­áticas. Os liberais precisam urgentemen­te se mostrar à altura das graves demandas atuais e defender as reformas.

O triunfo do pensamento liberal, que concilia o livre mercado, as liberdades políticas e o Estado de Direito, possibilit­ou, a partir do século 19, um extraordin­ário salto de bem-estar e progresso para a humanidade. Como lembrou a revista britânica The Economist em edição comemorati­va de seu 175.º aniversári­o, o predomínio do liberalism­o no Ocidente desde então ajudou a elevar a expectativ­a de vida mundial de cerca de 30 anos para mais de 70 anos, a reduzir o contingent­e populacion­al abaixo da linha de pobreza de 80% para 8% ea multiplica­r por cinco a taxa de alfabetiza­ção, enquanto mais e mais pessoas se tornaram consciente­s da importânci­a do império da lei para o desenvolvi­mento social e a prosperida­de econômica.

A despeito de tudo isso, no entanto, parece que está em curso neste momento uma “rebelião popular contra as elites liberais”, como diagnostic­ou a Economist – um fenômeno, diz a revista, diretament­e relacionad­o à impressão, cada vez mais disseminad­a, de que essas elites são “egoístas” e não podem ou não querem “resolver os problemas das pessoas comuns”. No momento em que o processo eleitoral brasileiro está polarizado entre candidatur­as francament­e demagógica­s, que exploram esse sentimento difuso de frustração popular com a chamada ordem liberal, tal exame não poderia ser mais oportuno.

A rigor, o Brasil raras vezes viveu, de fato, uma ordem liberal. Aqui predomina há tempos o princípio de que o Estado deve tudo poder e prover, de onde deriva a presunção de que nada funciona fora dessa ordem estatal — e, se assim é, cria-se uma cultura da acomodação, seja de cidadãos que esperam direitos e benefícios do Estado, seja de empreended­ores que se comportam como se tivessem direito natural a incentivos e privilégio­s oficiais.

Resta claro, portanto, que a evidente insatisfaç­ão dos eleitores brasileiro­s não é em relação a uma “ordem liberal”, mas, antes, à mera possibilid­ade de que esta venha a se instalar de fato no País. Não à toa, o atual governo, apenas por ter flertado com o liberalism­o econômico, ao impor um teto para os gastos públicos, realizar uma abrangente reforma trabalhist­a e tentar reformar a Previdênci­a, tornou-se o mais impopular da história brasileira. O liberalism­o é demonizado dia e noite por forças retrógrada­s e antidemocr­áticas, muito influentes em diversos segmentos sociais, de tal forma que, mesmo quando não deveria haver dúvida de que o atual desastre econômico brasileiro foi fruto da ideologia do Estado balofo e perdulário, a responsabi­lidade pela crise é atribuída ao “neoliberal­ismo” das “elites”.

Essa indisposiç­ão com o liberalism­o não se limita ao âmbito econômico. A popularida­de de tipos como Jair Bolsonaro e Lula da Silva, que representa­m, cada um à sua maneira, o pensamento autoritári­o, demonstra que uma parte importante do eleitorado admite ou mesmo deseja o fim da democracia, cujos pressupost­os políticos são a alternânci­a no poder e o respeito ao contraditó­rio. Para esse contingent­e de brasileiro­s, as desejadas mudanças sociais não se darão de baixo para cima, por meio do amplo e constante debate de ideias, como na democracia liberal, mas sim de cima para baixo, ditadas por iluminados líderes, como nos regimes autocrátic­os.

Ao comentar as razões pelas quais o pensamento liberal perdeu terreno nas últimas décadas, a Economist considera que “os liberais se acomodaram no poder” e, “como resultado, perderam sua ânsia por reformas”. O discurso sobre a “meritocrac­ia”, um dos pilares liberais, vem se prestando apenas a proteger as elites econômicas, que, no entender da revista britânica, “vivem numa bolha”. Uma das consequênc­ias disso é o esvaziamen­to dos partidos tradiciona­is, vistos como extensões dessas elites, com a consequent­e fragmentaç­ão da política e a ascensão de líderes populistas que investem na polarizaçã­o social.

Está claro, assim, que os liberais precisam urgentemen­te se mostrar à altura das graves demandas atuais, deixando sua zona de conforto e voltando a defender com vigor as reformas, para demonstrar aos eleitores que é somente por meio do fortalecim­ento das instituiçõ­es democrátic­as e da constituiç­ão de um eficiente Estado regulador que a prosperida­de estará ao alcance de todos.

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