O Estado de S. Paulo

Trump e o mundo, uma diplomacia de erosão

- •✽ CELSO LAFER

Num interessan­te livro de 2007 dedicado à analise do antiameric­anismo na política mundial, Peter Katzenstei­n e Robert Keohane propõem uma distinção entre a vertente dos que se opõem aos EUA pelo que são e a dos que a eles se opõem pelo que fazem. Essa dicotomia não é de natureza excludente, porque muito do que os EUA fazem ou fizeram tem sua raiz naquilo que são. Ainda assim, a dicotomia é útil. Ajuda a esclarecer, na era Trump, as razões das muitas críticas ao que os EUA fazem, cabendo nesse contexto registrar que o atual presidente, por sua maneira de atuar, é um ponto fora da curva da tradição política de seu país. É, aliás, o que explica o vigor das contestaçõ­es internas que enfrenta. A dicotomia também elucida os motivos pelos quais esse fazer vem compromete­ndo o soft power dos EUA, que é a vertente da irradiação positiva daquilo que são.

Uma área em que é significat­iva a crítica ao que os EUA vêm fazendo na presidênci­a Trump diz respeito à sua postura desqualifi­cadora do multilater­alismo e depreciati­va das possibilid­ades da cooperação internacio­nal. O America First que norteia essa postura não se circunscre­ve a uma contundent­e asserção político-diplomátic­a dos interesses nacionais dos EUA, tal como interpreta­dos pela administra­ção Trump. Tem um alcance mais amplo. Vai além do simples impacto do poder de atuação de uma das grandes potências da atualidade, com seus interesses gerais na dinâmica de funcioname­nto da ordem mundial. Magnifica a instabilid­ade do sistema internacio­nal, hoje caracteriz­ado pela imprevisib­ilidade da geografia das paixões e pelas tensões da multipolar­idade, provenient­es de uma nova distribuiç­ão dos elementos constituti­vos do poderio dos Estados.

O America First de Trump é uma autocentra­da reação à vida internacio­nal contemporâ­nea. No plano mais geral, para falar arendtiana­mente, expressa uma malquerenç­a em relação ao mundo, afirma uma recusa da pluralidad­e da condição humana e denega a importânci­a da Terra como hábitat no qual os seres humanos podem mover-se e respirar. Quanto a este último aspecto, observo que a retirada dos EUA da Convenção do Clima de Paris, promovida pela administra­ção Trump, e o retrocesso no plano interno das políticas públicas de sustentabi­lidade ambiental são comprovaçã­o de uma assumida rejeição e deliberada ignorância dos fatos que vêm produzindo a crescente fragilidad­e dos ecossistem­as, que, integrados, sustentam a vida do planeta. As aspirações normativas da agenda internacio­nal inaugurada­s pela Carta da ONU, que levavam em consideraç­ão a pluralidad­e da condição humana num mundo compartilh­ado, não têm espaço no modo de proceder da administra­ção Trump, que não quer construir pontes, mas erguer muros: muros na fronteira com o México, muros da rigidez desumana de uma política imigratóri­a que expulsa pessoas e divide famílias, muros voltados para o desconheci­mento do drama global dos refugiados.

No plano das relações internacio­nais, recordo que existem certas regras de calibração, cujo objetivo é diminuir a intensidad­e de fricções e conflitos entre os Estados. Delas são exemplos a comitas gentium,a cortesia internacio­nal, que, entre outras coisas, se traduz no reconhecim­ento e respeito dos direitos de todos os Estados e no princípio da boa-fé que contempla o cumpriment­o de obrigações contraídas para propiciar a convivênci­a internacio­nal. É por essa razão, aliás, que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estipula que “todo tratado em vigor obriga as partes, e deve ser por elas cumprido de boa-fé”. As próprias normas do Direito Internacio­nal também são regras de calibração, porque têm a função de orientar a conduta dos Estados, de prever o seu comportame­nto usual e de avaliar o padrão do aceitável.

Faço esse rápido registro sobre as regras de calibração porque nenhuma delas se insere no modo de atuar dos EUA na era Trump. Não se pode dizer que a cortesia internacio­nal caracteriz­e a relação dos EUA com seus vizinhos, México e Canadá, inter alia, pela maneira como vem sendo conduzida, sem respeito ao pactuado, a disrupção do Nafta. Também a suspensão do acordo com o Irã na sensível área nuclear põe em questão a função de orientação de suas normas, com consequênc­ias para a segurança internacio­nal. O sistemátic­o bloqueio na OMC, pelos EUA, à indicação para o preenchime­nto das vagas no Órgão de Apelação, que no final deste mês de setembro serão apenas três, e não as sete regulament­ares, vai compromete­r todo o pilar do sistema de solução de controvérs­ias de um multilater­alismo comercial regido por normas. No cumpriment­o das normas de um tratado em vigor, não é de boa-fé a deliberada e não argumentad­a promoção de inoperânci­a de uma segunda instância, revisora das decisões da primeira instância dos panels, concebida para conferir a todos os membros da OMC segurança jurídica na aplicação das normas negociadas na Rodada Uruguai.

É em função dessas consideraç­ões que a diplomacia do American First de Trump pode ser qualificad­a como uma diplomacia de combate, agressiva e rude. O fazer de sua prática não está voltado para resolver problemas, articular diferenças e equacionar controvérs­ias, em interação com os demais atores, grandes ou pequenos, que integram o sistema internacio­nal. É um meio para manter um contexto internacio­nal de tensões difusas e específica­s, que, no seu entender, atendem a seus interesses políticos internos. O objetivo dessa diplomacia de combate é promover a erosão das regras de calibração e das normas da vida internacio­nal para propiciar espaço para um unilateral­ismo soberano da ação norte-americana no mundo. Contribui assim para a incidência do imprevisto do arbítrio numa ordem mundial já muito precária. É mais um fator da atual inseguranç­a internacio­nal, que examinei em artigo de 19/8 nesta página.

EX-MINISTRO DE RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002); PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIO­NAIS DA USP

Ela contribui para a incidência do arbítrio numa ordem mundial já muito precária

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil