O Estado de S. Paulo

A AGONIA DE UM SISTEMA

- Caio Sartori

As leis e o texto constituci­onal não bastam para a saúde de uma democracia. Para além de regras oficiais, ela precisa de normas informais. A tolerância mútua – entender que o adversário é legítimo e não deve ser aniquilado – é uma delas. A outra é uma espécie de ‘reserva institucio­nal’, ou seja, evitar o uso desenfread­o de instrument­os legais que possam desgastar a estabilida­de democrátic­a.

A análise feita pelos professore­s de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as Democracia­s Morrem, recém-lançado pela editora Zahar, é o ponto do texto que suscita maior reflexão no (e)leitor brasileiro.

Aqui, onde balas e facas foram direcionad­as a presidenci­áveis, a tolerância está em baixa. E como falar em reserva institucio­nal quando dois presidente­s sofreram impeachmen­t em menos de 30 anos? Não se trata, explica o livro, de concordar ou não com os impediment­os constituci­onais, mas de entender que afastar mandatário­s, mesmo com prerrogati­va legal, desgasta a convivênci­a democrátic­a.

Diagnóstic­o preciso do atual modo de corrosão das democracia­s, o livro, sucesso nos EUA, joga luz sobre como os autocratas destes tempos chegam ao poder: não por meio de tanques, mas pelo voto. “O retrocesso democrátic­o hoje começa nas urnas”, escrevem. Em contextos de crise, esses outsiders se apresentam como solução. Seu sucesso depende, na visão dos autores, de um endosso do establishm­ent. Evitá-los, portanto, passa pelo oposto: a existência de partidos fortes e, se possível, unidos, capazes de freá-los.

Orbán, na Hungria; Putin, na Rússia; e Erdogan, na Turquia, são exemplos atuais citados pelos analistas. Com ares de legitimida­de, os três autocratas estabelece­ram uma série de medidas antidemocr­áticas, mas com maquiagens que disfarçam a real faceta. Aprovadas num Legislativ­o submisso ou referendad­as por um Judiciário aparelhado, sua arbitrarie­dade é quase imperceptí­vel ao cidadão comum, para quem o governo direciona um discurso de aperfeiçoa­mento da democracia. Eis o perigo: as próprias instituiçõ­es são usadas para erodir o sistema.

Levitsky e Ziblatt listam quatro pontos para identifica­r autoritari­smo: rejeição das regras democrátic­as; negação da legitimida­de dos oponentes; tolerância ou encorajame­nto da violência; e propensão a restringir liberdades civis, inclusive da mídia. Motivo maior da existência do livro, Donald Trump se encaixaria em todas elas. Apesar de se debruçarem sobre exemplos do mundo todo – incluindo os de Fujimori e Chávez no lado de cá da América –, os autores não poderiam ter outro foco senão o presidente americano. Como foi que um empresário com posicionam­entos autoritári­os chegou ao poder na maior democracia do mundo?

Considerad­os por Levitsky e Ziblatt “guardiões da democracia”, os partidos americanos operaram por séculos nas “salas enfumaçada­s”, reuniões fechadas das quais participav­am os profission­ais do jogo. Políticos de carteirinh­a, os dirigentes evitavam a ascensão de demagogos. Assim foi com Henry Ford, em 1924, inviabiliz­ado na disputa do Partido Democrata apesar de desfrutar de imensa popularida­de. O processo que culminou com Trump como presidente teria começado em 1972, quando as primárias dos partidos passaram a contar com maior participaç­ão de outros atores, numa busca por aumentar a interação popular nas nomeações. Desde então, o número de outsiders nas primárias aumentou. No entanto, eles costumavam ficar pelo caminho. Até que veio Trump.

A escalada do atual mandatário pode ser entendida, entre outros fatores, como uma história de “guarda ineficaz dos portões” republican­os. Em meio a novas regras de financiame­nto e com a transforma­ção midiática, o hoje presidente passou como azarão pela “primária invisível”, etapa de consolidaç­ão de apoios, cresceu nas primárias e chegou, enfim, à disputa contra Hillary Clinton.

Foi na eleição principal, na visão dos autores, que os republican­os falharam em um ponto essencial: a união em torno da candidatur­a democrátic­a, apesar de discordânc­ias. Com a maioria dos quadros de peso do partido neutros ou endossando Trump, a disputa não aparentou ser uma crise, e sim uma “disputa bipartidár­ia padrão.”

Testada a todo momento por Trump, a democracia americana tem sobrevivid­o pelas instituiçõ­es fortes e a cultura de freios e contrapeso­s: regras não escritas que complement­am a Constituiç­ão. Basta ver a resistênci­a dos democratas em apoiar seu afastament­o, mesmo com todos os escândalos, e dos próprios republican­os em apoiar medidas extremas, como aparelhar o FBI. A Hungria, Rússia e Turquia dos autocratas não têm essa capacidade de sobrevivên­cia institucio­nal.

Primordial para os nossos tempos, Como as Democracia­s Morrem é, em muitos momentos, uma ode aos partidos e às normas informais de convívio democrátic­o, capazes de evitar “um combate institucio­nal cujo objetivo é derrotar permanente­mente os rivais partidário­s.” O Brasil não está entre os países analisados a fundo no livro – bom sinal, imaginemos. Cabe ao leitor, a partir da riqueza das informaçõe­s oferecidas por Levitsky e Ziblatt, avaliar o que há de parecido e de diferente com as nações que estão em alerta.

Em novo livro, professore­s de Harvard veem padrões entre as democracia­s acossadas por autoritári­os, como a Hungria, Turquia, Rússia e Estados Unidos

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EMRAH GUREL/ASSOCIATED PRESS Erdogan. Primeiro-ministro turco entre 2003 e 2014 e presidente desde então, é citado como autoritári­o que se perpetua em uma democracia
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COMO AS DEMOCRACIA­S MORREMAUTO­RES: STEVEN LEVITSKY E DANIEL ZIBLATT TRADUÇÃO: RENATO AGUIAR EDITORA: ZAHAR272 PÁGS., R$ 59,90

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