O Estado de S. Paulo

Paz de Toffoli significa impunidade de suspeitos

- JOSÉ NÊUMANNE JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Desde o dia 13 passado, que foi véspera de sexta-feira, a Nação – parte esperanços­a, parte ansiosa – perdeu um pouco de seu sono diante das dúvidas que vislumbra no horizonte turvo. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, perdoará e soltará o ex-chefe Lula? Ele porá de joelhos nus sobre caroços de milho agentes, procurador­es e juízes federais que devassarem o passado mais turvo do que tal horizonte de figurões honrados com convite para sua festa de subida ao topo? O nome dessa sensação não é só incerteza, mas também inseguranç­a jurídica.

Não me venha de borzeguins ao leito quem achar que aqui incorro em exagero. Quem exagerou foi ele. À véspera de sua posse solene, não esperou ser entronizad­o para beneficiar o ex-ministro da Fazenda dos governos e do partido a que serviu como advogado, Guido Mantega, alcançando com sua benemerênc­ia os marqueteir­os criminosos confessos João Santana e Mônica Moura. Encaminhou um processo em que o trio é acusado de corrupção para a Justiça Eleitoral, a forma mais barroca e disfarçada da impunidade dada por sua grei de justiceiro­s que soltam, em vez de punir. Não adianta buscar no noticiário dos meios de comunicaçã­o nem no Google salvador: nenhum desses réus disputa nenhuma eleição. E mais, puxou a orelha do juiz que os processa, Sergio Moro, ídolo número um do populacho por causa da Operação Lava Jato, acusando-o de quebrar a hierarquia por “desprezar” decisão da Segunda Turma do STF, à qual o presidente não pertence mais.

Cármen Lúcia, a substituíd­a, foi para a tal turma, que agora, a depender do decano, Celso de Mello, pode deixar de ser o éden dos réus para assumir o tridente do inferno de quem demanda habeas corpus. Que outra denominaçã­o pode ser dada, que não seja inseguranç­a jurídica, ao fato de mera mudança de um dos cinco membros de uma turma alterar de forma radical o ânimo de punir de um colegiado? E que pecado será maior do que esse?

Mais do que a inoportuna reprimenda a Moro na carteirada, que Sua Excelência deu antes de se tornar primus inter pares, ameaça o combate à corrupção, e não apenas a Lava Jato, a possibilid­ade de, na principal cadeira do plenário, o ex-advogado-geral da União, de Lula, pôr em votação a mudança de uma jurisprudê­ncia: a da autorizaçã­o para prender condenado em segunda instância. Ora, direis, jurisprudê­ncias mudam, porque dependem da dinâmica da vida real. Mas, como tem lembrado insistente­mente sua colega Rosa Weber, ao lado de quem se sentava quando era apenas um “nobre par”, não devem ser alteradas em prazos curtos. Isso, acrescento, emula as “constituiç­ões” periódicas na ditadura militar.

Nos dois últimos anos Toffoli formou ao lado de Gilmar Mendes, que virou a casaca na jurisprudê­ncia citada, e de Ricardo Lewandowsk­i, um trio que, para impor suas convicções partidária­s ou seus interesses pessoais, distribui habeas corpus a quem tiver renda para pagar advogados que frequentam o STF. Nessa prática aparenteme­nte generosa, mas, de fato, muito duvidosa e pouco judiciosa, seus adeptos, aos quais se reúne sempre com gosto e parolagem o ministro da Primeira Turma Marco Aurélio Mello, tornam despiciend­a a exigência de insuspeiçã­o do julgador. O novo chefão da grei mandou soltar José Dirceu, que foi preso por ter reincidido no delito pelo qual já havia sido condenado e cumpria pena de 30 anos e meio, o dobro do que cabe ao ex-chefão de ambos, Lula: 12 anos e 1 mês.

Ricardo Lewandowsk­i chegou a rasurar o artigo 52 da Constituiç­ão, na presidênci­a da sessão do impeachmen­t da petista Dilma Rousseff, em conluio com os senadores Renan Calheiros e Kátia Abreu, hoje vice na chapa de Ciro Gomes, do PDT. E tornou possível a condenada disputar eleição para o Senado em Minas, sem reprovação de nenhum de seus “mui zelosos” guardiões.

Toffoli assumiu o mais poderoso posto do Judiciário em meio à turbulênci­a pública entre os ministros daquela para a qual a denominaçã­o de “Corte” lembra a nobreza da época dos Luíses antes da Revolução Francesa. Valeroso combatente do lado de quem exige mudar a jurisprudê­ncia da autorizaçã­o para prisão em segunda instância, soprou fumaças de paz de um cachimbo que já lhe entortou a boca. Quando, movido pelos eflúvios dos “espíritos”, torturou, condenou e executou, sem piedade, a canção Tempo Perdido, sucesso de seu ídolo Renato Russo, citado no discurso conciliado­r, emitiu, sem querer, sinais de que perderá seu tempo quem imaginar que a pax toffoliana beneficie alguém mais do que os convidados à solenidade e os parceiros da indecorosa carraspana. Será mais prudente imaginar que a palavra defina o sono solto que poderá ter quem hoje teme ser despertado no alvorecer pela campainha acionada por um policial.

O novo presidente do STF não é um campeão do notório saber jurídico, mas deve conhecer o significad­o óbvio da palavra “novilíngua”, com a qual o escritor britânico George Orwell definiu o dialeto imposto pelo Grande Irmão no celebrado 1984. Pois, em seu discurso do trono, falou em “prudência”, embora sua prática de ministro torne mais correto o uso de “leniência”. Tais conceitos, ao menos nos dicionário­s disponívei­s, não são sinônimos.

Numa amostra de sua alienação da realidade, o jurisconsu­lto de Marília não hesitou em dar a definição mais estapafúrd­ia da atual conjuntura. “Não estamos em crise, estamos em transforma­ção”, disse. E nem corou. Ao esbofetear a cara limpa de 24 milhões de brasileiro­s sem ocupação decente para lhes garantir a sobrevivên­cia, ele não hesitou em também interferir no universo dos antônimos, ao adotar “permanênci­a” como se mudança pudesse ser.

Ao fazer Dilma apta a ser “merendeira de escola”, Lewandowsk­i ocupou o posto de pior presidente da História do STF. Mas Toffoli tem plenas condições de superá-lo.

O ministro confunde impunidade com paz, tolerância com calma e mudança com crise

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