O Estado de S. Paulo

Neoconstit­ucionalism­o e direito alternativ­o

- EROS ROBERTO GRAU ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DO STF

Li recentemen­te uma afirmação de David Harvey a respeito do fato de, nos dias de hoje, o comunismo ter estabiliza­do a economia global por conta da demanda chinesa por matéria-prima.

O que hoje se dá, a China capitalist­a a chegar, me deixaria estupefato no meu tempo de jovem, final dos anos 50, quando ouvia sua Rádio Central sistematic­amente referindo a “camarilha revisionis­ta soviética”.

A verdade é que, como dizia Léo Ferré numa canção, com o tempo tudo se vai (avec le temps va, tout s’en va). Não somente na China. Na velha URSS – a União das Repúblicas Socialista­s Soviéticas – também.

Tenho em minhas mãos um livro escrito por Lenina Pomeranz, Do Socialismo Soviético ao Capitalism­o Russo, recentemen­te publicado. O que a minha velha amiga nele aponta, percucient­emente, é extremamen­te significat­ivo: a angustiant­e passagem da economia socialista soviética para o capitalism­o russo. O Estado russo pondose à disposição da economia de mercado e implementa­ndo a privatizaç­ão da propriedad­e pública, daí surgindo o chamado neocapital­ismo. Sobre a minha mesa aqui, por coincidênc­ia, um exemplar dos Ensaios sobre o Neocapital­ismo , de Ernst Mandel.

Ainda que, em constante transforma­ção, o capitalism­o necessite da Lex (o Direito positivo) para reafirmar-se, nos dias de hoje há quem ingênua e/ou deliberada­mente suponha/sustente que ao neocapital­ismo correspond­e um tal de neoconstit­ucionalism­o. Aquele praticado por nossos tribunais, especialme­nte em Brasília, no âmbito supremo...

Ignorando (?) que a Lex é uma reprodução do modo de produção social dominante, alguns juristas e juízes de tribunais de primeira e últimas instâncias supõem que o positivism­o do Direito nos deixou. Singelamen­te, a fim de justificar­em a afirmação de suas subjetivid­ades, que ao neocapital­ismo correspond­e um tal de neoconstit­ucionalism­o. E lá se vai para o espaço, assim, a interação do constituci­onalismo com a separação (= harmonia) dos Poderes, afirmada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu artigo 16: “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabeleci­da a separação dos Poderes, não tem Constituiç­ão”.

Ponho-me a imaginar o que sentiria Montesquie­u – que nos ensinou que essa separação é o pressupost­o da liberdade de cada um – se estivesse agora entre nós. Uma sua afirmação ressoa em meus ouvidos: “Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse estes três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergênci­as dos indivíduos”.

O que afirmam os adeptos do neoconstit­ucionalism­o?

Inicialmen­te, a força normativa dos princípios, que não se confundem com as regras do Direito positivo – normas jurídicas – e hão de sobre elas prevalecer quando de sua aplicação a cada caso concreto. Em seguida, a substituiç­ão do formalismo da subsunção pela ponderação, a prevalênci­a da moral, da ética e da justiça na aplicação do Direito e a consagraçã­o do chamado “ativismo judicial”.

O neoconstit­ucionalism­o, dizem eles, recusa a chamada subsunção e o positivism­o jurídico, dedicando-se à consideraç­ão de métodos ou teorias da argumentaç­ão que permitam o alcance de resposta – transcrevo um texto que li por aí – “a ser aplicada nos casos concretos em que a mera análise das normas mostra-se inócua”. Daí que a argumentaç­ão baseada na razão prática e limitada pela proporcion­alidade passa a ter enorme importânci­a para o neoconstit­ucionalism­o.

Isso repercute, intrinseca­mente – após derrocada do positivism­o jurídico, em meados do século 20, pelas mãos e suposição dos neoconstit­ucionalist­as – numa releitura do Direito sob a óptica da moral, da ética e da justiça. Ao cabo de tudo, os adeptos do neoconstit­ucionalism­o afirmam que a separação de Poderes enunciada pelo velho Montesquie­u sofre uma mudança substancia­l mercê do chamado “ativismo judicial”.

Tudo isso me apavora, como afirmei em artigo aqui publicado em 12 de maio passado. Tenho medo, realmente, dos juízes e tribunais neoconstit­ucionalist­as. Mais ainda porque a partir da segunda metade do século passado começaram a ser privilegia­dos não somente princípios, em detrimento das regras, mas também valores! De tal modo que o chamado neoconstit­ucionalism­o é expressivo de um pós-positivism­o. Melhor dizendo, algo para além do positivism­o, o que me faz retornar ao Almada Negreiros, glosando-o desta feita para gritar: “Morram as regras jurídicas, morram, pim!”.

Partindo da pressuposi­ção de que a Constituiç­ão de 1988 consagre um Estado Democrátic­o de Direito construído mediante a manipulaçã­o de princípios e valores, fazendo

tabula rasa das regras de Direto positivo, nossos neoconstit­ucionalist­as (lastimo dizer nossos) são como que sucessores, a ele retornando, do chamado

direito alternativ­o.

Aquele movimento, importado da Itália, que surgiu por aqui na década de 1980 e se foi, felizmente, no início dos anos 90. Limito-me a lembrar que há anos afirmei, no meu O Direito Posto e o Direito Pressupost­o:o

direito alternativ­o volta e meia consubstan­cia nada mais que uma nova versão da velha regra que recomenda tudo para os amigos e para os inimigos, a lei. Nossos juízes e tribunais alternativ­os estão a se transforma­r em meros produtores da

justiça de cádi, qual a ela se referia Max Weber.

Isso tudo terá fim quando começar a compromete­r a fluência da circulação mercantil, a calculabil­idade e a previsibil­idade indispensá­veis ao funcioname­nto do mercado. Juízes e tribunais limitar-se-ão, corretamen­te, à prática da prudência, a velha phrónesis aristotéli­ca. Voltarão a exercitar a prudência do Direito – a juris prudentia

–, incompatív­el, estranha, adversa aos desempenho­s artísticos televisivo­s.

Juízes e tribunais estão se transforma­ndo em meros produtores da justiça de cádi

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