O Estado de S. Paulo

O irredutíve­l

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Mesmo tendo consciênci­a de que vou entrar num terreno movediço, a conjuntura me leva a abordar o irredutíve­l. O inarredáve­l é a porta fechada à tranca. É que não tem jeito ou remédio. O “The End” que nos obriga a sair do escurinho do cinema para a clareza cruel da vida. Como dizia Tia Amália para quatro meninos ouvintes nas tardes de chuva nas quais eram reduzidos a ficar em casa para não pegar pneumonia: “Acabou-se a história!”.

O irredutíve­l falta de intenções e tentações. Ele também é óbvia ou oculta baliza social. O irredutíve­l quarto escuro cheio de fantasmas volta a ser um rotineiro aposento quando a luz se acende! O pesadelo no qual o diabo surge em todo o seu poder simplesmen­te desaparece quando acordamos. Viver o “noves fora, zero!” ou perder uma eleição é passar pelo irredutíve­l.

Reduzir faz parte do vezo ocidental. A água é redutível à combinação de moléculas de hidrogênio e oxigênio. Mas a liquidez ultrapassa o materialis­mo molecular. Basta recordar, com o antropólog­o Leslie White, como um gesto transforma o líquido definido pela química numa alegórica e possante “água benta”. Por outro lado, um filtro a transforma em “água potável”; ao passo que o fogo produz “água destilada”. Colocado diante de copos com água benta, potável e destilada beberíamos, com toda certeza, o da água potável. A água assentada para beber que, mais além, não se confunde na famosa “água que passarinho não bebe”...

Isso nos remete à variedade dos irredutíve­is. Seria possível dizer que “cada sociedade tem o irredutíve­l que merece?” – e que esse limite é o que produz sua singularid­ade ou colorido? E que quase sempre é reduzido a um estereótip­o, tipo: os ingleses são fleumático; os franceses são refinados e os americanos são chatos por que não mentem? Enquanto nós, somos avessos ao trabalho porque fomos fabricados por “raças inferiores”?

O irredutíve­l é tido como natural – os homens são de Marte, as mulheres de Vênus – ele é o ponto, o dogma e o tabu. Em muitos casos, é o impensável e o antilógico cimentador do senso comum. Não brinque com fogo! Respeite a mulher alheia! Não beba demais!

Antes do advento da antropolog­ia social (quando o mundo era grande), os irredutíve­is dos outros eram tidos como heréticos, atrasados e primitivos. Talvez nem existissem...

Mas, na verdade, todo mundo tem seus irredutíve­is. Decifrá-los é traduzilos. Mas tome cuidado porque quando se questiona um irredutíve­l, ele pode virar tabu; pode reafirmar-se como um dogma ou surgir na forma de uma crença. Antigament­e, a crença e a fé surgiam no campo religioso. Num mundo sem Deus, porém, elas viram radicalism­os que exigem fidelidade absoluta. Morrer por alguma coisa faz suspeitar que essa coisa seja um irredutíve­l.

Todo radicalism­o é irremível ou um resistente a outra linguagem. Seu absolutism­o recusa a possibilid­ade de ele ser expresso num outro código. O irredutíve­l recusa traduções.

Conhecer uma pessoa é ter acesso aos seus irredutíve­is. Saber do que ela gosta, conhecer seus hábitos e valores.

Quais seriam os irredutíve­is do Brasil lido como sociedade e cultura? A falta de gestão eficiente, privilégio­s além da conta, desperdíci­os de toda ordem, mentiras como credo, total ausência de senso de realidade, gastos excessivos e, por fim, mais não por último, o flagelo da corrupção que substituiu o dragão inflacioná­rio. No espaço de uma croniqueta, esses são alguns irredutíve­is consciente­s.

Mas e os que nem são percebidos? Como o viés hierárquic­o que nos torna alérgicos a toda norma igualitári­a ou meritocrát­ica e faz com que tenhamos duas faces? Uma para os nossos e outra para os outros? Afinal, como dizia um grande ator político, temos todas as coragens, menos a coragem de recusar o pedido de um amigo. Estaria nesse jogo contraditó­rio o nosso irredutíve­l?

Conhecer uma pessoa é ter acesso ao seu lado inflexível, saber do que gosta, seus hábitos

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil