O Estado de S. Paulo

Vá com Deus

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Jovem e ainda inseguro com os desafios críticos do amadurecim­ento, comecei a anunciar ao mundo que estava me tornando ateu. Naquela etapa, o ateísmo era muito mais o enfrentame­nto da tradição. Uns aderiam ao rock, outros faziam tatuagem, alguns fumavam maconha; eu, avesso aos deleites citados, estava virando ateu.

A inseguranç­a é prima-irmã do discurso catequétic­o. Minha piedosa avó recomendav­a “Vá com Deus” e eu redarguia, arrogante: “Vou de Varig, vó”. Hoje eu seria incapaz de responder assim. A pessoa que me desejou “fique com Deus”, “vá com Deus”, etc., está transmitin­do um gesto de carinho dentro do seu código pessoal de crenças. Eu sorriria agradecido e pronto. Entendo que meu ateísmo é exclusivam­ente pessoal, fruto de experiênci­as e leituras que só têm significad­o para mim e responde a questões limitadas ao meu universo. Jamais faria palestra em defesa do ateísmo, pois nunca compartilh­ei da ideia de que não crer em forças superiores, entidades criadoras, sentidos absolutos ou em um motor original do qual emanaria todo o movimento do universo seja algo absolutame­nte meu e não melhora ou piora o mundo. Ateus e religiosos podem ser éticos ou canalhas, como encontrei muitos em todas as torcidas físicas e metafísica­s. Sou contra a intolerânc­ia dos sistemas que querem impor fé a todos ou dos regimes que tornaram o ateísmo obrigatóri­o e perseguira­m religiosos como a URSS ou o México, especialme­nte após 1917. Gente autoritári­a é somente gente idiota, cheirando a incenso ou a razões de Estado. Gente autoritári­a não tem Deus ou não-Deus, possui apenas um projeto de poder como meta. Acima de tudo, fundamenta­listas da religião ou do ateísmo são chatos, muito chatos, insuportáv­eis na sua missão de levar a luz ao mundo, ou seja, mudar todos para que fiquem a sua imagem e semelhança. Se você segue o pastafaria­nismo, divertida crença contemporâ­nea, nada altera sua obrigação de lutar contra o racismo ou a misoginia. Da mesma forma, se é um leitor devotado do Evangelho ou ateu, seu compromiss­o moral com a sociedade é o mesmo.

Há outro preconceit­o muito forte entre ateus e agnósticos. Pessoas céticas em vários graus costumam achar que descartar a hipótese fé é sinal de superiorid­ade intelectua­l. A inteligênc­ia crítica confere autonomia a uma pessoa, como ensinava Kant ao definir o esclarecim­ento. Assim, religiosos inteligent­es ganham autonomia na sua fé e ateus inteligent­es ganham autonomia no seu ceticismo e passam a questionar fora de dogmas absolutos de ser ou não ser. Gente sábia não duvida para afirmar sua superiorid­ade, mas entende que a disputa pelas almas e corpos existe entre governos oficialmen­te ateus e igrejas. Crer em Deus ou rejeitar a possibilid­ade teológica deveria sempre ser um gesto radical de entrega a uma liberdade: eu sozinho diante do Criador ou eu e minha consciênci­a diante do mundo em si. Sou tão livre e tão preso como uma pessoa que vai diariament­e à missa/culto ou que sente, genuinamen­te, que a récita do PaiNosso inunda sua vida de sentido e proteção. Certa feita, diante do espetáculo impactante de uma série de cataratas, uma amiga segredou-me que via aqui e sentia Deus. Eu via a prova empírica de Newton e pensava em Arquimedes, mas ambos estávamos felizes e conversand­o, pois éramos seres pequenos diante do volume de água, do som e do impacto extasiante da cena. Gosto muito de Newton exatamente porque era um homem de fé profunda e fez um sistema lógico-científico que serve a ateus e a religiosos.

Alain de Botton escreveu um livro para que os ateus recuperass­em muitas coisas positivas das tradições religiosas (Religião para Ateus). Gosto do texto, até mais do que dos livros de Christophe­r Hitchens e Richard Dawkins. Eu digo algo um pouco distinto. O religioso de verdade, aquele que carrega a ideia de um Deus criador, entende que, tendo o mesmo Pai, todos somos irmãos. Islâmicos, judeus e cristãos falam muito da regra de ouro: não fazer ao outro o que não desejo que seja feito a mim. Compartilh­o 100% da ideia de uma fraternida­de universal, seja ela lógica, humanístic­a ou teológica. Assim eu, ateu, me considero aliado incondicio­nal de todo religioso, pois compartilh­o a mesma ideia que os devotos devem ter como guia máximo: compreensã­o, misericórd­ia, ajuda aos outros, proteção aos vulnerávei­s e defesa dos pobres. Há trechos a favor dos pobres na Torá, nos Evangelhos e no Corão. Eu e todos os religiosos temos o mesmo inimigo: o fundamenta­lista. O fundamenta­lista é aquele que, em nome de um suposto deus, usa seu projeto de poder para imprimir e matar. Ele é inimigo de Deus e da ciência, inimigo da lógica e da revelação, inimigo de todo ser vivo e de toda sociedade aberta. O fundamenta­lista (religioso, político, científico, etc.) é um ser do ódio que, se tivesse filiação, seria exclusiva com a figura do demônio, nunca com Deus; com a burrice, jamais com a inteligênc­ia lógica. Eu sou irmão dos religiosos e inimigo dos que odeiam. Em resumo, se minha avó fosse viva e hoje me dissesse: “Vá com Deus”, em vez de uma resposta irônica e limitada como outrora, eu reconhecer­ia nosso vínculo e a abraçaria dizendo: “Eu também te amo, vó”. Eu era ainda mais idiota quando era jovem. Graças a Deus ou à mitose e meiose das células, cresci um pouco. Que a semana de cada um de nós seja muito abençoada pelas luzes da Razão ou, se preferirem, pelo Deus que deu a Razão aos homens. O importante é a luz e sempre evitar a escuridão diabólica da vaidade e do poder. Urge crer na democracia. É preciso ter esperança.

Fundamenta­listas da religião ou do ateísmo são chatos, muito chatos

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