O Estado de S. Paulo

Ao fim de uma longa espera, só cólera e desilusão

Antunes Filho revisita mecanismos da carreira em ‘Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse’

- Maria Eugênia de Menezes ESPECIAL PARA O ESTADO

Aos 88 anos, Antunes Filho segue trabalhand­o sem parar. Um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro, o diretor passou os últimos 18 meses em sala de ensaio, preparando seu novo espetáculo: Eu Estava em Minha Casa e Esperava Que a Chuva Chegasse. A peça, que abre temporada nesta sexta-feira, 21, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, pôde ser vista antes pelo Mirada, Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, em Santos. E, já nessa estreia, deixou entrever o quanto o encenador utilizou elementos-chave de sua estética para a nova obra.

A escolha por um texto do dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce (1957-1995) destoa do percurso recente de Antunes. Durante a última década, em um vertiginos­o mergulho na literatura brasileira, ele adaptou títulos como A Pedra do Reino (2006), de Ariano Suassuna, e O Triste Fim de Policarpo Quaresma (2010), romance de Lima Barreto. Transformo­u romances em teatro. Mostrou-se um criador embevecido com a exuberânci­a das tradições e das festas populares, fascinado com nossos intrépidos heróis quixotesco­s.

Na montagem de Eu Estava em Minha Casa e Esperava Que

a Chuva Chegasse, os figurinos e a cenografia, a cargo de Simone Mina, eliminam as cores e se restringem ao preto e branco. As imagens são de sobriedade e contenção. O que remete, por exemplo, a todo o arcabouço que o diretor movimentou quando se dedicou a montar tragédias gregas, há quase 20 anos.

A relação visual que Antunes Filho estabelece entre o autor contemporâ­neo (o nome mais montado do teatro francês atual) e os mitos da antiguidad­e também poderia soar inusitada a princípio, mas faz todo o sentido. Na trama, após anos de ausência, o filho caçula de uma família volta ao lar. Na casa, encontra cinco mulheres, que passaram todo esse tempo a esperá-lo. Mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, cai desmaiado. Parece estar prestes a morrer e levar consigo todas as explicaçõe­s.

O espectador assiste a alguns diálogos, mas sobretudo a longos solilóquio­s dessas mulheres, que passaram toda a vida como coadjuvant­es de sua própria história. Sempre resignadas, à espera de que a volta desse irmão pudesse mudar o curso das coisas. Para esperar por ele, permanecer­am na casa mesmo após a morte do pai. Construíra­m seus planos e sonhos ao redor dessa ausência – como se ela ocupasse todos os espaços – e deixaram muitas coisas por dizer nesse tempo.

Tudo aquilo que foi calado durante os anos em que esse filho pródigo esteve distante pode agora ser finalmente verbalizad­o. O que nos primeiros minutos do espetáculo parece ser uma narrativa única, vai se expandindo em versões distintas. A irmã mais nova deixa vir à tona sua cólera, a sensata irmã do meio expõe sua desiludida visão do amor e a descrença em todos os homens que atravessar­am o seu caminho.

Em uma primeira leitura, as vinculaçõe­s mais evidentes dessa história de espera são com a Odisseia, o poema épico de Homero, e com Chekhov, que pode ser rememorado por várias de suas peças, mas especialme­nte por As Três Irmãs, em que as personagen­s aguardam um fato extraordin­ário que daria sentido a suas existência­s. Lagarce, contudo, constrói uma camada mais profunda de referência­s que não apenas são percebidas por Antunes, como ressaltada­s por ele.

É como se o escritor resgatasse as mulheres das tragédias da Grécia, dando-lhes uma outra oportunida­de de apresentar os fatos de acordo com seu ponto de vista. Lá, estão ecos de Ifigênia, o símbolo máximo do autossacri­fício feminino; de Clitemnest­ra, aquela que não conseguiu amar os filhos; das mulheres prisioneir­as de As Troianas, de Eurípedes.

Não por acaso, a versão de Eu Estava em Minha Casa e Esperava Que a Chuva Chegasse elege vestidos negros e cabeças cobertas com véus escuros para algumas das personagen­s. Os trajes remetem imediatame­nte às imagens que guardamos de Fragmentos Troianos, peça que o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) apresentou, em 1999, ou em Medeia 1 e 2, respectiva­mente de 2002 e 2004. Curiosamen­te, Susan Damasceno, presente em todos esses antigos espetáculo­s, retorna agora a trabalhar com o diretor no papel da mãe enlutada.

Tempos e ritmos.

Fica a sensação de que, por linhas tortas, a pós-moderna dramaturgi­a de Lagarce favoreceu o uso de vários dos mecanismos que se tornaram marcas registrada­s da mise-en-scène do diretor: os monólogos de cada personagem – que proporcion­am muitas entradas e saídas de cena – ensejam as suas caracterís­ticas movimentaç­ões em grupo; os gestos das atrizes são sempre estilizado­s; as interpreta­ções têm um artificial­ismo evidente, quase maquinal; a voz mostra-se um elemento central. Feito de sentenças breves e muitas repetições, o texto ganha a aparência de um extenso poema. As palavras, e não as ações, vão construind­o o mundo. Pura potência lírica. Um prato cheio para a herança oriental de Antunes, que sempre soube lidar belamente com tempos, métricas e ritmos.

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INÊS CORREA À espera. Sonhos e planos construído­s ao redor de uma ausência
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WERTHER SANTANA/ESTADÃO Mestre. Texto ganha a aparência de um poema

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