‘Situações de dívida são empurradas com barriga’
Para advogado, prejuízo tem de ser assumido e partilhado para que empresa tenha chance de voltar a crescer
Cátia Luz
Um dos principais especialistas em reestruturação de empresas do País, o advogado Eduardo Munhoz acredita que há um incentivo no Brasil para que as situações de dívidas sejam “empurradas com a barriga”, na tentativa de se evitar decisões difíceis, como assumir e dividir o prejuízo entre companhia, sócios e investidores. Para o advogado, que esteve à frente de casos emblemáticos – como o da empreiteira OAS, da operadora Oi e do Grupo EBX, de Eike Batista –, diante de uma companhia em crise, é preciso adequar o tamanho da dívida à nova realidade. “Só assim ela pode se dedicar a trabalhar e ter chance de novo de crescimento”.
Como as companhias brasileiras chegaram a esse nível de endividamento?
O Brasil saiu muito rapidamente de um momento de grande otimismo para uma forte crise, o que fez com que boa parte das empresas passasse a ter uma estrutura de dívidas incompatível com a capacidade de geração de caixa. No auge, as companhias brasileiras nunca tinham tido acesso a tantas fontes de financiamento – da onda de aberturas de capital ao aumento enorme da emissão de dívida, aqui e no exterior. Mas, com a crise, ficou claro que os projetos de crescimento que suportavam essas captações eram, em sua maioria, inexequíveis.
Por quê?
Eles se baseavam na expectativa de que o Brasil iria crescer a taxas muito elevadas, baseadas sobretudo no aumento do mercado interno.
As dívidas foram feitas com o pressuposto de que as empresas seriam muito maiores.
Mas ficaram muito menores. O risco faz parte do negócio, e o insucesso, do jogo. Mas esse insucesso deve ser partilhado entre os envolvidos. Não são apenas o sócio, os administradores, os executivos das empresas; mas também o banco, o investidor. Todo mundo, ao tomar suas decisões, errou em alguma medida.
A perda tem de ser dividida?
A lição que tiramos de economias resilientes, com capacidade de reagir rápido a crises, é assumir os prejuízos, zerar o jogo e começar de novo. É o que faz girar a economia. É duro, mas pior que não realizar a perda, é prolongá-la. Na crise de 2008, os EUA reestruturaram US$ 3,5 trilhões em dívidas em dois anos. Isso é uma divisão de perdas: se a empresa ficou menor e a dívida maior, não tem como pagar. É preciso adequar o tamanho da dívida à nova realidade da empresa para que ela possa trabalhar e ter chance de crescer de novo.
Isso não é possível no Brasil?
O crédito corporativo nunca teve grande peso no resultado dos bancos. O Brasil não tem tradição de grandes fontes de financiamento privado nem em como maximizar a recuperação do crédito de empresas em crise. Até pouco tempo, era apenas o departamento de contencioso do banco que lidava com companhias em reestruturação.
Que outras deficiências prejudicam a recuperação?
Uma empresa em crise tem muitas dificuldades em acessar novas fontes de financiamento e investimento. Isso faz com que ela evite ao máximo pedir a recuperação. Quando pede, está tarde demais. O sistema judiciário, que permite recursos infinitos, também é um complicador.
O sr. citaria algum caso afetado por essas dificuldades?
O plano de recuperação da OAS foi aprovado em sete meses pelos credores, mas demorou 15 meses para ser aprovado nas diversas instâncias judiciais. Ainda na OAS, havia mais de 40 instituições interessadas em financiar a empresa tendo ações da Invepar como garantia. Mas, quando viram que havia o risco de o acordo ser anulado em recursos judiciais, só uma ficou à mesa. Não temos no Brasil o conceito, existente nos EUA, de que contratos celebrados durante a recuperação não podem ser anulados por recursos judiciais futuros.
E como ficam as empresas nesse cenário?
Há incentivo para que situações de dívidas sejam empurradas com a barriga. O que se vê muitas vezes são rodadas de reestruturação, numa boa tradição brasileira, para inglês ver. Todo mundo sabe que não vai dar certo, mas faz de conta que é uma reestruturação definitiva porque é uma maneira de ninguém tomar uma decisão difícil. Mais pra frente, pode ser impossível salvar a empresa. Ela morre aos pouquinhos; são as empresas zumbis, que são péssimas para economia e para a sociedade.
Em que sentido?
Não têm capacidade de investimento, de inovação, perdem toda energia apagando incêndio. Além disso, travam o investimento. O investidor estrangeiro que quer comprar um negócio no país, em geral procura empresas estabelecidas para adquirir, porque é difícil começar do zero. O País afasta investidores com maior grau de exigência de compliance, sofisticação e diversificação.
O sr. cita questões culturais que dificultam os processos de reestruturação.
Há o conceito de “capital cívico”, de cumprimento voluntário de regras éticas, que tem relação direta com o nível de desenvolvimento econômico-social de um país. Você confia na pessoa com quem está negociando? No Brasil, apenas 9% confiam, contra 68% na Suécia. Isso diz muito do nosso ambiente regulatório e de negócios. Enquanto não conseguirmos inverter isso, por melhor que seja a lei, é difícil mudar.
E é possível?
Muitos países, EUA entre eles, têm em sua história uma época marcada por corrupção, que aos poucos deu lugar a um capitalismo baseado na regra da lei, o chamado Estado de Direito, na impessoalidade e meritocracia. A Lava Jato, a despeito de alguns excessos, talvez possa ser um ponto de inflexão.
Excessos de que tipo?
Há uma preocupação, mesmo na Lava Jato, de preservar as empresas, mas não é um conceito arraigado no Brasil. Nos EUA, o Departamento de Justiça americano (DoJ), quando faz acordos de colaboração, tem um conceito ability to pay: as punições às empresas obedecem a uma régua que não leva em conta só o tamanho do dano, mas também a capacidade da companhia de pagar. A ideia é punir os responsáveis, mas não matar as empresas.