O Estado de S. Paulo

Individual­idades exuberante­s

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Mais do que um conjunto de interações institucio­nais, é habitual ver agentes públicos tentando, por meio de performanc­e individual, influir na ação estatal.

A temática do combate à corrupção eclipsou outros importante­s debates da construção do Estado brasileiro, afirmou Francisco Gaetani, presidente da Escola Nacional de Administra­ção Pública (Enap), no seminário Eficiência da gestão pública e instituiçõ­es de controle: como maximizar os dois termos da equação?, promovido recentemen­te pela Fundação Fernando Henrique Cardoso. Para que o Estado cumpra minimament­e a sua finalidade, há um longo caminho de reformas e melhorias na organizaçã­o do poder público, que vai muito além da questão da corrupção.

Ainda não existe uma busca efetiva pela eficiência na administra­ção pública. “Na administra­ção federal não existe nenhum mecanismo que valoriza a busca da eficiência”, afirmou Francisco Gaetani. E se isso ocorre no âmbito da União, ainda mais graves são as deficiênci­as administra­tivas nas esferas estadual e municipal.

No seminário, o presidente da Enap ressaltou um aspecto muitas vezes esquecido no debate sobre gastos públicos. Investir recursos em áreas meritórias – como, por exemplo, em saúde e educação – não é sinônimo de eficiência na gestão desses recursos. Também se pode gastar muito mal o dinheiro público na saúde e na educação. Não basta, portanto, exigir investimen­to em áreas socialment­e relevantes. A tarefa de buscar eficiência é sempre necessária, ainda mais em tempos de ajuste fiscal.

Também participou do seminário o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carlos Ari Sundfeld. Ele lembrou que, em termos de organizaçã­o do Estado, o País ainda está nos passos iniciais. Em vez de se ter uma atuação estável e impessoal, há no Brasil um “Estado de individual­idades exuberante­s”, disse Sundfeld. Mais do que um conjunto de interações institucio­nais, como deveria ser, é habitual ver agentes públicos tentando, por meio de sua performanc­e individual, influir na ação estatal.

Essa caracterís­tica está presente na gestão pública e também nos órgãos de controle. Carlos Ari Sundfeld ressaltou, por exemplo, que a ideia de autonomia funcional do Ministério Público conduziu a uma atuação pessoal de seus membros muito além do razoável, o que produz problemas de coordenaçã­o do trabalho de controle e mais ineficiênc­ias.

O diagnóstic­o é de que o País vive hoje um momento de expansão de interferên­cias, a partir do pressupost­o de que toda ação de controle – por exemplo, do Ministério Público ou do Tribunal de Contas da União – seria positiva, o que não é verdade. Toda atuação do Estado tem custo e gera consequênc­ias. A maturidade institucio­nal deve conduzir precisamen­te a que a todos os órgãos do Estado, também os de controle, atuem responsave­lmente, avaliando empiricame­nte as consequênc­ias de suas ações.

Para o professor Sundfeld, houve, nas últimas décadas, uma profunda mudança cultural no mundo jurídico. Antes, ante um pedido para modificar ou suspender um ato do Executivo, o juiz tendia a respeitar o ato administra­tivo, com base no princípio da deferência e da presunção de legalidade. Hoje, a tendência do Judiciário é interferir no outro Poder. A deferência à autoridade administra­tiva parece um anacronism­o.

Mas os países desenvolvi­dos não abandonara­m esses princípios da deferência e da presunção de legalidade, lembrou Carlos Ari Sundfeld. Além de prestigiar­em as competênci­as específica­s de cada Poder, eles têm também sua razão de eficiência e agilidade. “É preciso recuperar esses valores”, disse o professor da Fundação Getulio Vargas.

Neste ano, um passo significat­ivo foi dado em direção à maturidade institucio­nal, com a aprovação da Lei 13.655/18, que alterou a chamada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Em nome da segurança jurídica, a nova lei busca que os órgãos do Estado assumam responsabi­lidade na tomada de decisões, exigindo uma análise mais profunda das consequênc­ias e das alternativ­as da decisão, bem como uma melhor fundamenta­ção jurídica. A aplicação da lei não pode ser mero exercício de idiossincr­asias do agente público.

Nesse processo de amadurecim­ento institucio­nal, é de grande importânci­a avaliar, com realismo, as consequênc­ias dessas individual­idades exuberante­s. O custo para o País tem sido enorme. Urge avançar.

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