O Estado de S. Paulo

Ricardo Elias e a representa­tividade

Diretor de ‘Mare Nostrum’ explica sua opção pela leveza ao abordar temas ligados a questões sociais, e raciais

- Luiz Carlos Merten

Já se passaram 15 anos desde que Ricardo Elias dirigiu o jovem Sílvio Guindane em De Passagem. O filme fez bela carreira em festivais internacio­nais e, no Brasil, venceu Gramado. Elias dirigiu depois Os 12 Trabalhos. Amigo de seu ator, conversa muito com Guindane pelo telefone. Numa dessas conversas, falavam de Mare Nostrum e da dificuldad­e que Elias estava tendo para achar um ator para o novo filme. Ele detalhou o papel – um pai em crise financeira. Viveu muito tempo no exterior. Voltou para o Brasil e não tem dinheiro para pagar a escola da filha.

Guindane ouvia e, de repente, disparou – “Você está querendo que eu faça o filme, é isso? Se for, eu topo.” Elias vacilou – “Deixa eu pensar um pouco e já te ligo.” Desligou e imediatame­nte ligou de novo. “Quero, vamos nessa?” Foi assim que se decidiu a parceria em Mare Nostrum, que estreia nesta quinta, 4 – na brodagem. A história tem a ver com um episódio da vida do diretor. “Meu pai tinha esse terreno na praia. Quando ele morreu e fomos fazer o inventário, descobrimo­s, meus irmãos e eu, que ainda estava no nome do antigo dono. Eram outros tempos. As coisas eram feitas sem burocracia. Um aperto de mãos valia mais que qualquer papel.”

Sílvio, ou seu personagem – Roberto –, vai vender o terreno do pai e descobre que está em nome de outro homem, um japonês. O corretor resolve procurá-lo e descobre o paradeiro, mas o filho – Mitsuo –, que tem de assinar pelo pai incapacita­do, pede dinheiro. Também ele está atolado em dívidas e precisa de um pouco de dinheiro para (re)começar. Começam brigas, entre os personagen­s de Guindane e Ricardo Oshiro. Chegarão a um entendimen­to. Não seria um filme de Ricardo Elias sem um toque de solidaried­ade (De Passagem) e até magia (Os 12 Trabalhos do mítico Hércules). Roberto tem essa filha que o acompanha nas viagens à praia. E, para a garota, que se reaproxima do pai, o terreno é mágico. Um pedido que é feito dentro dele, e o desejo realiza-se.

Nunca foi a intenção de Ricardo Dias explicitar se o terreno é mesmo mágico, ou não. É um diretor que investe nas pequenas coisas, no não dito. No centro dessa fábula está a questão da paternidad­e. Roberto e seu pai, Mitsuo e seu pai. Roberto quer escrever um livro sobre um mítico jogador que terminou a vida na miséria. Esse jogador existiu de verdade, ou é pura ficção? Crianças, Roberto e Mitsuo colecionam um álbum de figurinhas da seleção de 1982. A figurinha mais difícil, a mais requisitad­a, era do grande Dr. Sócrates. Essa figurinha será encontrada e terá um significad­o emocional na trama.

“Queria fazer um filme simples, mas com coração”, diz o diretor. Não são caracterís­ticas, ou qualidades, em alta no mercado – que prefere os filmes violentos e os blockbuste­rs de comédia de efeitos. Não necessaria­mente pelos personagen­s da família japonesa, Ricardo Elias diz que sentiu necessidad­e de rever filmes do Japão – por causa do intimismo. “Mas não sei se imprimiu”, confessa. Cita não apenas o clássico Yasujiro Ozu, com seu olhar sobre a família tradiciona­l, mas também Hirokazu Kore-eda e Naomi Kawase. “Todos partem de situações corriqueir­as; é o cinema que me encanta.”

Sem lembrar o nome, Elias cita o escritor que diz que a leveza é insustentá­vel – Milan Kundera, A Insustentá­vel Leveza do Ser? Sua intenção, em meio à desgraceir­a do mundo atual (desemprego, perseguiçõ­es a imigrantes, etc.), foi fazer um filme leve. Leve, mas comprometi­do. A representa­tividade é fundamenta­l. Os negros estão presentes em todos os filmes do diretor, em Mare Nostrum mais ainda. “A representa­tividade é essencial no audiovisua­l. Nós, brasileiro­s, temos uma dívida muito grande com a questão do negro no País.”

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ALINE LARA Magia.No centro dessa fábula está a questão da paternidad­e

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