O Estado de S. Paulo

Aposta na magia que existe nas pequenas coisas da vida

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Na primeira cena de Mare Nostrum, vemos duas pessoas que falam sobre um negócio. A família de um deles está no carro, mulher e crianças. Um terreno à beira-mar está sendo vendido por um e comprado por outro. Estamos no município de Praia Grande, litoral paulista. Chove. Mas, de súbito, a chuva cessa, conforme desejo de um dos personagen­s.

Numa passagem de tempo, vamos acompanhar anos depois a chegada de um jornalista esportivo, Roberto (Sílvio Guindane) que, ficamos sabendo, passou alguns anos na Europa, mas teve de voltar. No Brasil ele deixara um casamento falido e uma filha da qual pouco se lembrava. Outro rapaz, Mitsuo (Ricardo Oshiro) também retorna ao Brasil, ele que fora com a mulher tentar a sorte no Japão, terra do seu pai.

Ambos, Roberto e Mitsuo, regressam com sonhos desfeitos, mas desejo de recomeçar. Têm planos, mas estão sem dinheiro. Roberto aspira a escrever um livro sobre um jogador famoso, que terminou mal sua carreira. Já tem a pesquisa feita, precisa de tempo e editor. Mitsuo não se encaixa bem na peixaria que a família tem em Santos; prefere tornar-se designer gráfico. Ambos precisam de capital. De alguma forma, aquele remoto terreno na Praia Grande, município vizinho a Santos, irá uni-los.

Temos aqui o estilo de Ricardo Elias, depurado em dois longas anteriores – De Passagem e Os 12 Trabalhos. Faz um cinema de muita simplicida­de e tonalidade emocional controlada. Prefere sugerir a explicitar. Mas não reserva ao espectador zonas de sombra ou mistério.

E talvez seja esse um dos problemas mais evidentes de Mare Nostrum – a abordagem, ainda que sutil, de um certo universo mágico e que diz respeito àquele tal terreno à beiramar. Quando a história sai do registro realista e flerta com o mágico, a trama perde um pouco de consistênc­ia. Mas, a bem da verdade, deve-se reconhecer que tudo ou quase tudo que acontece pode ser explicado por “causas naturais”. Dessa maneira não se sabe ao certo se a tal “magia” acontece de fato ou essa impressão mora apenas na cabeça dos protagonis­tas.

O campo em que melhor se move a história é o das pequenas dificuldad­es do dia a dia, e de como elas aproximam ou afastam as pessoas. É nesse mundo miúdo que o cinema de Elias se ambienta melhor. Porque as questões, em determinad­o momento, são financeira­s. É preciso dinheiro para pagar o colégio atrasado da filha de Roberto. Dinheiro para comprar o equipament­o de informátic­a para Mitsuo. Enquanto isso não acontece, Roberto é pressionad­o pela ex-mulher, enquanto Mitsuo se desentende com a irmã, que toca a peixaria depois que o pai ficou paralisado por um AVC.

Há uma beleza nisso tudo e ela diz respeito a esse elemento pequeno da vida. De modo geral, as pessoas não se movem por ideais grandiosos, mas por questões de mera sobrevivên­cia. As relações entre elas vão se tecendo, se fortalecen­do ou enfraquece­ndo à medida que se persegue esse objetivo simples, que é o de realizar projetos ou apenas viver bem.

Outros elementos enriquecem esse filme em aparência tão despojado. O principal, a figura do pai de Roberto, João (Ailton Graça), que aparece nas primeiras sequências, quando compra o terreno de Nakano (Edson Kameda), e depois sai de cena. Melhor, sai fisicament­e de cena, pois a lembrança que deixa faz adivinhar uma figura complexa, cheia de matizes e energia vital. De modo lateral, Mare Nostrum é também um filme sobre encontros e desencontr­os com figuras paternas, tanto por parte de Roberto como Mitsuo. E Roberto, ele próprio, está sendo questionad­o em sua posição paterna, como provedor da filha. Tudo fica em família, como nos melhores dramas. Ou nas comédias dramáticas, pois, em meio aos conflitos de relacionam­entos, encontra-se também espaço para o humor. Este se concentra na figura de Orestes (Carlos Meceni), corretor de imóveis enrolão e cheio de frases de efeito.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil