Investigando privadas
Lübeck é um dos portos mais importantes no norte da Alemanha. É considerado pela Unesco patrimônio mundial. Hoje, a cidade tem 250 mil habitantes. O local foi habitado por humanos desde o fim da última era glacial, 9.700 anos antes de Cristo, e se tornou um centro de trocas no período Neolítico, 3.600 anos antes de Cristo. Na Idade Média, por volta de 1.200 depois de Cristo, se transformou no centro da Liga Hanseática, uma poderosa organização comercial que controlava o comércio no mar Báltico.
Foi por isso que um grupo de cientistas resolveu estudar os restos de fezes que se acumularam por milênios nas fossas, latrinas e privadas de Lübeck. É examinando as fezes que os parasitologistas modernos descobrem se estamos infectados por vermes intestinais. Esses vermes habitam nosso intestino e produzem ovos resistentes que são liberados nas fezes. Como a forma desses minúsculos ovos é típica de cada gênero de parasita, é possível identificar o tipo de verme que habita o intestino. Aí basta tomar um vermífugo. Mas os vermífugos são invenção recente, e antigamente as pessoas passavam a vida infectadas, espalhando vermes. Basicamente há duas formas pelas quais podemos nos infectar: ingerindo alimentos feitos com animais que já estavam contaminados, como peixe cru ou carne de vaca, e da maneira fecal-oral, quando algum resto de fezes com ovos de vermes fica em nossa mão e acaba em nossa boca.
Os cientistas imaginaram que, monitorando os tipos de ovos encontrados em latrinas e comparando as mudanças de parasitas presentes em Lübeck, poderiam entender como a alimentação mudou e quando novos tipos de vermes chegaram à cidade. Para fazer esses estudos, os cientistas aproveitaram as escavações feitas pela Unesco em Lübeck para coletar fezes de todas as camadas de resíduos que se acumularam ao longo de séculos nas latrinas da cidade. De posse das fezes, determinaram os parasitas usando um microscópio e analisaram o DNA presente nos ovos para identificar a espécie. Com esses e outros dados foi possível reconstituir o que aconteceu em Lübeck ao longo dos séculos.
Até se tornar um centro comercial, as fezes de Lübeck eram parecidas com as encontradas em outras cidades do período. Os vermes eram todos do tipo que infecta de maneira fecal-oral. Depois, a diversidade aumentou, e cepas encontradas em Bristol e outras cidades começaram a aparecer em Lübeck. Por volta de 1.000, surgiram vermes típicos de peixes. Como o consumo na região é antigo, a descoberta sugere que os peixes dos rios e lagos foram infectados e contaminaram a população – um sinal de poluição. Mais tarde, por volta de 1.300, com o florescimento da cidade, os vermes provenientes de peixes diminuíram. Nessa época surgem nas privadas os provenientes de carne vermelha, o que sugere que a proteína animal consumida passou a ser de mamíferos.
É a primeira vez que cientistas usam exames parasitológicos em larga escala, com o sequenciamento de DNA, para estudar a saúde e os hábitos alimentares de nossos antepassados. A abordagem é promissora, pois permite descobrir os hábitos alimentares, suas mudanças e a chegada de populações e alimentos a cidades antigas. É uma nova ferramenta, e no futuro veremos cada vez mais cientistas dedicados à escavações de privadas. Como se vê, em ciência tem trabalho para todos os olfatos.
MOLECULAR ARCHAEOPARASITOLOGY IDENTIFIES CULTURAL CHANGES IN MEDIEVAL HANSEATIC TRADING CENTRE LÜBECK. PROC. R SOC B. 285:20180991 2018